Imagine aliar o ensino do futebol com princípios de respeito, cooperação e solidariedade? Pois esse é o objetivo do futebol Callejero (“Fútbol Callejero”, em espanhol), uma prática de educação popular originada na Argentina. A metodologia foi criada no início dos anos 2000, no bairro de Moreno, na cidade de Buenos Aires, pelo educador popular e ex-jogador de futebol Fábian Ferraro. “O objetivo era recuperar o diálogo e o protagonismo dos jovens que viviam um clima de violência e de crise social”, conta o mestre profissional em educação física pela Universidade Federal de São Carlos (Ufscar) Tiago Grifoni.

“O nome remete a ‘calle’, que significa rua em espanhol. Assim, trata-se de um futebol ‘rueiro’, no qual crianças e jovens jogam sem árbitros e a partir de suas próprias regras”, completa ele, que é autor da dissertação “Processos educativos emergentes de uma unidade didática com o Fútbol Callejero nas aulas de educação física” (2020).

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Gols não determinam vencedor

Também mestre profissional em educação física pela Ufscar, Fabio de Moraes explica que o futebol callejero difere bastante do convencional.“A competição não é o principal objetivo; os times devem ser necessariamente mistos (com alunos e alunas); as regras são acordadas antes da partida entre os participantes e o saldo de gols não determina o time vencedor”, introduz.

Em termos de estrutura, o jogo é realizado em três tempos. No primeiro, os participantes entram em acordo sobre as regras que serão utilizadas no jogo. “No segundo, acontece o jogo propriamente dito. Por fim, no terceiro, é realizada uma roda de conversa para verificar qual foi o time vencedor”, esclarece Moraes, que é autor da dissertação “Educação física escolar e a contribuição da Metodologia Callejera nos conhecimentos atitudinais” (2020). A partida também não tem um árbitro, mas um mediador, que acompanha o jogo sem interferir. “Ao final, conduzirá a roda de conversa para verificar o desfecho da partida e quem foi o vencedor”, descreve.

Três pilares

Mas já que os gols não determinam o vencedor do futebol callejero, o que será avaliado pelo mediador? Grifoni explica que a metodologia é sustentada por três pilares: respeito, cooperação e solidariedade. “Para pontuar no pilar ‘respeito’, os participantes devem ter respeitado as regras, seus companheiros de equipe e adversários”, esclarece Grifoni.

O pilar ‘cooperação’ avalia as relações dentro do próprio time. “Ou seja, se todos participaram, receberam a bola e se sentiram incluídos”, acrescenta. Já o pilar de solidariedade diz respeito às relações entre os adversários. “Uma situação de fair play é uma atitude de solidariedade. Se o jogador paralisou o jogo em prol de colega que estava caído, por exemplo”, explica Grifoni.

Para que a roda final seja bem conduzida, é fundamental que o professor-mediador observe a atuação e atitudes dos alunos com atenção.“Assim, poderá promover reflexões sobre as situações que ocorreram no jogo e também definir o placar final”, pondera o professor.

Além dos três pilares da metodologia, outras competências socioemocionais podem ser estimuladas. “Caso de autoconsciência, autogestão, consciência social, habilidade de relacionamento e a tomada de decisão responsável”, elenca Moraes. “Vejo também empatia e alteridade, com os alunos se colocando no lugar dos outros”, opina Grifoni.

Possíveis barreiras

Grifoni indica trabalhar o futebol callejero a partir do quarto ano do ensino fundamental. “É quando os alunos apresentam maior capacidade de compreensão dos pilares e valores da metodologia”, justifica

Moraes lembra que é comum enfrentar uma resistência inicial dos estudantes quando a metodologia é apresentada. “Afinal, estamos imersos em uma lógica de consumo do futebol, um jogo competitivo, que visa o rendimento, excludente e o que interessa é demonstrar as habilidades motoras”, analisa.

Grifoni sentiu o mesmo ao trabalhar com uma turma de 9º ano de ensino fundamental durante o seu mestrado. “Houve resistência por parte dos meninos que se consideravam mais habilidosos. Mas a partir do quarto encontro, isso se dissipou”, afirma.

Contra o problema, ele indica promover reflexões sobre o futebol antes de apresentar a prática. “Pergunto se o futebol que eles jogam é inclusivo, se todos participam ou se só os mais habilidosos dominam a bola”, exemplifica. Ele também associou uma atividade de júri simulado sobre preconceitos de gênero no futebol.

“No final, houve empoderamento das meninas, que começaram a praticar o esporte com autonomia e protagonismo. A prática de futebol misto se tornou constante nas praças do entorno da escola. Além disso, notei muitos gestos de tolerância e solidariedade na hora das partidas”, comemora.

Para o professor que fará o papel de mediador, Moraes sugere experimentar a metodologia sem julgamento ou ânsia de acertar de primeira: “Faça as anotações da aula, verifique o que funcionou e o que não funcionou, troque ideias com outros professores e aplique novamente”.

Outro ponto é que o futebol callejero originou a chamada metodologia callejero, que permite que os mesmos princípios sejam aplicados em outros esportes coletivos. “Os três pilares e a divisão do jogo em três tempos são facilmente transpostos para partidas de vôlei, basquete e handebol”, garante Grifoni.

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