A poesia pode ajudar a aproximar alunos do futebol e vice-versa, como aponta o professor de literatura, arte e cultura brasileiras da Universidade Eduardo Mondlane (Moçambique) e pesquisador de literatura e futebol Gustavo Cerqueira Guimarães. Ele lembra que o esporte pode ser pensado como linguagem – assunto abordado em um ensaio, de 1971, do cineasta, poeta, intelectual e ex-jogador italiano Pier Paolo Pasolini (1922-1975). “O futebol é um sistema de signos, ou seja, uma língua, ainda que não-verbal. Mesmo caso da pintura, cinema, moda ou mímica”, contextualiza.

De olho na estrutura

Ao ler poemas com alunos da educação básica, o professor de literatura pode se atentar para possíveis semelhanças entre a estrutura do texto e a de uma partida. “Pode haver imagens, formas, estruturas e ritmos derivados do jogo”, orienta Guimarães. Um exemplo é o poema “Reis de Copas”, de Jovino Machado, publicado na antologia “Pelada poética” (2013). Em um trecho, o autor diz:

Taffarel céu
Roque rock Piazza asa Dario rio Tostão bolão
Rivelino hino Reinaldo rei
Garrincha incha Maradona doma Gaúcho luxo
Pelé balé

“A partir dele, pode-se discutir esquemas táticos e princípios do futebol. Aqui, o esquema é um 4-2-3-1, com Taffarel no gol; Roque Júnior, Piazza, Dario e Tostão na defesa; Rivelino e Reinaldo como volantes; Garrincha, Maradona e Ronaldinho Gaúcho pelo meio; e Pelé como centroavante”, explica. No texto, o poeta subverte o posicionamento de jogadores famosos. “Traz uma escalação irreverente, propensa ao drible e ao gol”, descreve o pesquisador.

Outro exemplo é o poema “O salto”, de Anna Amélia de Mendonça (1896- 1971), publicado no livro “Alma” (1922). Nele, a autora homenageia seu marido, o ex-goleiro da seleção e do Fluminense, Marcos de Mendonça. Ela diz: “Ao ver-te hoje saltar para um torneio atlético,/ Sereno, forte, audaz como um vulto da Ilíada,/ Todo o meu ser vibrou num ímpeto frenético,/ Como diante de um grego, herói de uma Olimpíada”. “A beleza atlética é exaltada por meio das regras precisas do soneto, sugerindo aproximação entre os dois campos de linguagem. Afinal, ritmo e espacialidade são preponderantes tanto na poesia quanto no futebol”, justifica Guimarães.

Além do campo

Sobre conteúdos dos poemas, vale lembrar que o esporte se relaciona, historicamente, a temas sociais complexos. “No Brasil, ultrapassa o estádio e abrange política, mundo do trabalho, racismo, gênero, homoafetividade, entre outros. Mobiliza afetos, discursos, impacta a economia e as relações sociais”, enfatiza Guimarães. Assim, ele defende que ao apresentar um texto, o professor alargar as interpretações com informações sobre seu contexto e motivações de criação da obra.

Além disso, ao sugerir a criação de poemas pelos alunos, vale ajudá-los a pensar o futebol fora das grandes instituições – Confederação Brasileira de Futebol (CBF) ou Federação Internacional de Futebol (FIFA), por exemplo. Os times pequenos e de bairro, a infância e a memória podem ser explorados. “O futebol é praticado país afora, na praia, na várzea da comunidade, na escola, no clube, na rua, etc. Os estudantes podem realizar reflexões mais produtivas a partir de suas práticas esportivas e experiências”, opina.

Projeto interdisciplinar

Uma possibilidade pedagógica é o professor de literatura se unir ao de educação física para um projeto interdisciplinar. Isso ajudará alunos que não são familiarizados com o esporte a entenderem sua linguagem.“Como disse Pasolini, quem desconhece o código do futebol não entende o significado das suas palavras (os passes) nem o sentido do seu discurso (um conjunto de passes)”, traduz Guimarães.

Para ilustrar a necessidade dessa bagagem prévia, o pesquisador cita o poema “Distância”, de Jovino Machado (“Pelada poética”, 2013). Não quero te ver/ do mesmo ponto de vista/ que o marcos vê o rogério ceni/ numa partida de futebol/ entre palmeiras e são paulo”. “Esse poema pode ser ilegível para quem desconhece a linguagem do futebol. Por outro lado, com conhecimento, a distância sugerida no texto se configura mentalmente, pois se trata de dois goleiros. Ou seja, quem enuncia não quer ver o outro distante”, exemplifica.

Garimpo de poemas

Segundo Guimarães, os poemas sobre futebol estão majoritariamente dispersos em antologias temáticas, como a “Pelada poética” (2013) e “Pelada poética: Copa do Mundo no Brasil” (2014). Nesta última, ele indica o poema de Wagner Moreira “Bola que balança a rede humana”, publicado também pela revista FuLiA/UFMG. Outra opção é o livro “Quando é dia de futebol” (2002), que reúne poemas e crônicas de Carlos Drummond de Andrade; “38 círculos” (2010), de Luis Maffei; e “O jogo, Micha e outros sonetos” (2019), de Wilberth Salgueiro. Recentemente, há excelentes trabalhos dispersos em livros de poesia, como “Expertise”, de Tatiana Pequeno, e “Jogos escolares”, de Angélica Freitas, publicados respectivamente em “Onde estão as bombas” (2019) e “Canções de atormentar” (2020).

Já a relação entre as estruturas do poema e de uma partida de futebol pode ser aprofundada no artigo de Guimarães “Poéticas do futebol: formas do jogo no papel”, publicado no livro “O futebol nas ciências humanas no Brasil” (Editora da Unicamp, 2020).

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