Leonardo Valle
É comum o tráfico de pessoas ser associado a grandes redes internacionais e à exploração sexual. O problema, contudo, é mais amplo e comum do que parece. Desde a Lei 13.344/2016, considerada o marco legal do tema, também são enquadrados nesse crime o trabalho em condições análogas à escravidão (quando alguém é privado de liberdade e de direitos, como educação e saúde), a servidão, a adoção ilegal e até o deslocamento para remoção de partes do corpo, de cabelo a órgãos.
“Apesar de haver tendências para o tráfico de mulheres para exploração sexual e de homens para o trabalho análogo à escravidão, essas não são exclusivistas. É o caso das bolivianas, aliciadas para trabalhar em fábricas de costuras – um tráfico laboral que envolve o público feminino”, esclarece a coordenadora de proteção da Organização Internacional para as Migrações (OIM), Érika Kaefer.
O Brasil é rota para o tráfico de pessoas, sendo país de origem, destino e circulação. “Ele pode acontecer entre cidades e estados, não apenas entre países”, explica a diretora executiva da Associação Mulheres Pela Paz, Vera Vieira. “Quem alicia e recruta, mas também quem transporta, transfere ou aloja alguém traficado, está cometendo o crime”, aponta.
A advogada e presidenta da Associação Brasileira de Defesa da Mulher, da Infância e da Juventude (Asbrad), Dalila Figueiredo, conta que uma das vítimas atendidas pela instituição havia conhecido um homem de São Paulo pela internet.
“Ele lhe prometeu casamento. Ao se deslocar para a cidade, ela se viu em cárcere privado, sendo obrigada a cuidar da sua mãe e a manter relações sexuais sem consentimento. Esse também é um exemplo que configura o crime”, ilustra.
Medo de denunciar
Dados sobre o tráfico de pessoas são difíceis porque o crime é subnotificado. “Há a dificuldade em ter e também em sistematizar os números, já que os países usam metodologias diferentes”, explica Kaefer. “Mas o Brasil não é diferente, o ato m criminoso acontece em todas as nações e locais”, desmistifica.
De acordo com Figueiredo, um dos problemas para a subnotificação é que o tráfico não faz apenas vítimas diretas – a pessoa traficada – mas indiretas, como parentes e amigos. “Eles são ameaçados, o que gera o medo de denunciar”, explica.
Além disso, é comum a pessoa traficada não se ver como vítima. “Ela acha que a culpa é dela, que foi boba de ter acreditado na promessa”, acrescenta Kaefer.
Há ainda o preconceito. Em 2018, a Associação Mulheres Pela Paz divulgou uma pesquisa com 1.585 entrevistados em oito capitais brasileiras. “43% avaliam que tráfico de mulheres é feito com o consentimento das vítimas, e 55% acreditam que elas estavam em busca de ‘vida fácil’”, denuncia Vieira.
Outro ponto é que questões culturais dificultam a identificação do problema. “A servidão doméstica é relativizada. Tem essa relação cultural de ‘ajudar’ uma menina em troca de comida. De repente, essa pessoa é colocada em trabalho doméstico e privada de liberdade”, aponta Kaefer.
Vítimas
As entrevistadas afirmam que o perfil da vítima de tráfico é amplo. “Já atendi pessoas de 18 a 54 anos, de todas as classes, nessa situação”, lembra Figueiredo. Contudo, é mais fácil que as pessoas sejam vítimas quando fazem parte de uma população mais vulnerável. “A mulher negra é a mais atingida pela violência doméstica, pelo feminicídio e pelo encarceramento, logo, pelo tráfico também”, ilustra.
A denúncia de situação de tráfico pode ser feita de forma anônima pelo Disk Direitos Humanos (*100 ) e na Central de Atendimento da Mulher Vítima de Violência (*180). As ligações são gratuitas.
Como prevenção, vale ainda desconfiar de propostas vantajosas no exterior ou fora da sua cidade, principalmente realizadas pela internet, assim como ofertas de casamento.
“Jamais entregue passaporte e carteira de trabalho para terceiros. Deixe o endereço de onde ficará com a família ou pessoa de confiança, procurando manter contato com eles”, lista Vieira. “Informe-se sobre o trabalho, local e condições que você ficará no exterior ou fora da sua cidade”, acrescenta.
O Brasil aderiu, desde 2004, ao tratado internacional contra o tráfico chamado Protocolo de Palermo. Um desdobramento foi o 3º Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, em vigor desde 2018. Entre seus objetivos, está o fortalecimento de redes de prevenção, acolhimento e responsabilização pelo crime.
Figueiredo lembra que a capacitação de diferentes profissionais e serviços públicos é uma medida de grande valia. “Escola, profissionais da saúde, policiais etc. devem ter uma escuta sensível. Investigando um caso de violência doméstica, por exemplo, é possível descobrir uma vítima de tráfico”, diz. “Ou ao ver adolescente que cumpre medida socioeducativa e está em uma cidade ou estado diferente da sua origem”, acrescenta.
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