Era 2005 quando a psicóloga Analía Kalinec descobriu que seu afetuoso pai, Eduardo Kalinec, era o Doutor K, responsável por sequestros e tortura na ditadura militar argentina. A notícia veio quando ele foi preso e condenado a prisão perpétua.

História similar à da paraguaia Olinda Ruiz, que descobriu que seu avô, Julián Ruiz Paredes, foi um torturador ao visitar o Museu das Memórias, em Assunção, e ver o nome dele mencionado por vítimas.

A necessidade de se opor ao silêncio e à visão de mundo de sua família fez com que Kalinec criasse, em 2017, na Argentina, o movimento Histórias Desobedientes, que ganhou células no Chile, no Uruguai, no Paraguai, na Espanha e, mais recentemente, no Brasil. O grupo é composto por parentes de agentes da repressão e milita por memória, verdade e justiça.

‘Desobedecer é não se calar’

Luara de Souza Ferreira, 39, é uma das integrantes do Histórias Desobedientes no Brasil. Foi na morte do seu avô paterno que ela, então adolescente, assustou-se ao ver  dezenas de policiais no velório.

“Meu avô era um senhor que teve a perna amputada por conta do diabetes, não saía de casa e não tinha amigos”, relata.

Para ela, o avô era uma referência paterna. “Ele era ranzinza, mal-humorado, preconceituoso, rígido, não tinha carinho ou capacidade de acolhimento, mas era provedor. Se tive uma infância estável e privilegiada, foi por conta dele”, conta.

Durante o percurso para o cemitério, quando o carro em que Luara estava foi escoltado pela polícia, sua mãe contou a verdade. O avô dela era Raul Ferreira, o Pudim, que trabalhou no Departamento de Ordem Política e Social (Dops) na virada dos anos 1960 e 1970 e foi braço direito do delegado Sérgio Paranhos Fleury.

Pudim era tido como membro do Esquadrão da Morte e listado, nos documentos da Comissão da Verdade (órgão temporário criado para investigar violações de direitos humanos na ditadura) como participante de sessões de tortura como “pau-de-arara”, “choque elétrico”, “afogamento” e outros.

“Há um imaginário de que torturados são sociopatas que você reconhecerá à primeira vista, quando eles têm vidas duplas. Torturam e voltam para casa para almoçar com filhos”, desmistifica Ferreira.

Assim como outros membros do Histórias Desobedientes da América Latina, ela enfrentou dois desafios ao descobrir o segredo familiar: digerir que a pessoa que lhe criou não era quem ela pensava ser e desobedecer a família ao se opor publicamente à ditadura e às violações de direitos humanos.

“Anos mais tarde, quando meu irmão se suicidou, optei por me afastar da minha família. Foi um luto duplo extremamente dolorido. Mas continuar ali me fazia mal”, conta.

“Desobedecer é não se calar. A família, quando apoia, ignora ou silencia sobre crimes, pode passar uma aparência de que o parente torturador não era tão ruim assim”, pondera.

ditadura
Antiga sede do DOI-Codi, centro de repressão da ditadura em São Paulo (Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil)

“O mesmo Exército que formou meu pai está nas ruas’

Primeiro membro do Histórias Desobedientes no Brasil, o cineasta Caio Felipe Rezende, 30 anos, foi adotado pelos seus avôs maternos, os quais considera pais.

“Meu avô era militar, foi provedor e maravilhoso. Mesmo na reserva, continuava frequentando quarteis, e aquele era meu universo quando criança”, relembra.

“Eu ouvia da família, até então, que ele foi revolucionário, que lutou contra a ameaça comunista no Brasil, que teve um papel heroico”.

“Foi durante o período da Comissão da Verdade, quando tentaram indiciar o general Newton Cruz pela bomba do atentado Riocentro, que eu o vi perder a calma. Cruz era amigo do meu pai. Ele socou a cadeira, e isso me botou uma pulga atrás da orelha. Por que aquele incômodo e aquela raiva?”, relata.

Rezende passou na faculdade de História e depois migrou para o cinema, momento em que conheceu outros relatos sobre a ditadura militar brasileira (1964-1985) e que descobriu ter sido o avô um agente da repressão.

A coragem para falar publicamente sobre o assunto se deu quando conheceu o Histórias Desobedientes e a diretora Lissette Orozco, do documentário “O Pacto de Adriana”, em que aborda a sua relação com a tia, que atuou nas torturas da ditadura chilena.

Para ele, abordar o tema pode evitar que a história se repita.

“O mesmo Exército que formou meu pai é o que está nas ruas. Os torturadores que se aposentaram viraram professores”, enfatiza.

Mas, assim como ocorreu com Ferreira, a decisão de Rezende de falar sobre o assunto teve sequelas familiares. “Minha relação familiar se esfacelou, mas não tinha como eu seguir aquele pacto de silêncio. Vejo o quanto a ditadura afetou e afeta pessoas, e que continuamos reproduzindo coisas horríveis”, afirma.

“Há muitos filhos e netos de torturados, e isso é uma dor em muitas famílias. Mas não é porque não se fala que ela não existe”, conclui.

Para Ferreira, a impunidade deve ser combatida. “Ao pesquisar o nome do meu avô na internet, no início dos anos 2000, um dos primeiros artigos que encontrei dizia que ele havia ‘morrido como um eremita’”, explica.

“Não é verdade: ele teve família, envelheceu com privilégio e apoio médico. Achar que houve qualquer punição contra ele, na terra ou divina, é fantasia. É importante dizer que os canalhas também envelhecem e precisam ser punidos”, finaliza.

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Crédito da imagem: Paulo Pinto – Agência Brasil

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