Leonardo Valle
Em fevereiro de 2019, o Ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, encaminhou à Câmara dos Deputados um projeto de lei com o objetivo de fortalecer o combate à corrupção e crimes violentos. Denominado “Pacote Anticrime”, o PL propõe alterações no código penal, lei de crimes hediondos, código eleitoral, entre outros.
Alguns pontos da medida, contudo, podem agravar os casos de violência e execuções praticadas por policiais, segundo advogados e organizações internacionais de direitos humanos. De acordo com a proposta, um juiz poderia reduzir ou absolver a pena por homicídio de policiais que justificarem sua ação por medo, surpresa ou violenta emoção.
“A alteração não é bem-vinda porque são conceitos subjetivos e qualquer assassinato poderia entrar nessas três categorias e ser considerado legítima defesa”, descreve o membro do Conselho do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Arthur Trindade.
Segundo nota da ONG Human Rights Watch, policiais frequentemente justificam crimes alegando falsamente legítima defesa, após reagirem à ação de criminosos.
“A proposta é uma verdadeira licença para matar e favorece o cometimento de chacinas, massacres e a proliferação de grupos de extermínio nas polícias. Medo, surpresa e a violenta emoção servirão para atenuar ou excluir a responsabilização penal de policiais assassinos”, ressalta o advogado e membro do Conselho Estadual de Direito da Pessoa Humana (Condepe), Ariel de Castro Alves.
“Policiais poderão entrar em favelas e comunidades matando pessoas deliberadamente para depois justificar. O mesmo vale para manifestações, atos públicos nas ruas e rebeliões em presídios ou unidades de internação de adolescentes. A violenta emoção pode também ser justificada quando policiais vingam a morte de colegas matando suspeitos e não suspeitos, como ocorreu na chacina de Osasco, em 2015”, ilustra.
Audiência virtual
O “Pacote anticrime” também propõe uma alteração no Código de Processo Penal (CPP) que possibilitaria um policial acusado de um crime de responder ao processo em liberdade. Nesse caso, o problema levantado é a possibilidade de ameaças contra possíveis testemunhas do caso.
“O policial poderia ser colocado em liberdade mediante fiança e análise de um delegado. Nesse caso, penso que o juiz seria mais adequado, pelo maior afastamento da situação e dos fatos e por ter mais experiência na matéria”, avalia o advogado criminal e professor do Instituto de Direito Público de São Paulo (IDP), Gustavo Neves Fortes.
O projeto de lei permite a condução de audiências de custódia e qualquer interrogatório por videoconferência, visando redução de custos. Nesta primeira, o acusado preso em flagrante é ouvido por um juiz, que avalia possíveis ilegalidades em sua prisão. Aqui, de acordo com as fontes, o contato apenas por vídeo poderia dificultar a detecção de sinais de tortura e coação.
“A videoconferência em audiências comuns pode ser uma alternativa, uma vez que há custos e logísticas para transferir o preso para o Fórum. Contudo, a audiência de custódia tem particularidades. É o primeiro momento onde juiz, promotores e defesa analisarão a integridade física e mental do detido. Nesse sentido, a medida é inadequada”, contesta Trindade.
Impunidade
A preocupação com os efeitos colaterais do “Pacote Anticrime” nos casos de letalidade policial se dá pela pouca investigação e impunidade nos crimes cometidos pelos agentes do Estado. De acordo com a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), que investigou os chamados “autos de resistência” (mortes em decorrência da atividade policial), 98% dos inquéritos entre 2010 e 2015 foram arquivados.
De acordo com o Instituto de Segurança Pública (ISP), no Estado do Rio de Janeiro, foram registradas 1.532 mortes por meio de intervenção militar em 2018, sem que houvesse verificação de desvio de conduta em nenhum dos casos.
“A título de comparação, mesmo em países como o Canadá, onde a polícia mata muito menos, há registro de desvio de conduta entre as mortes praticadas por policiais todos os anos”, lembra Trindade.
A forma de funcionamento da Corregedoria da Polícia Militar, órgão responsável pela investigação de crimes e infrações dos agentes, também é alvo de críticas. “Elas são corporativas, ou seja, os próprios colegas dos policiais violentos que atuam nelas. Precisamos de corregedorias com policiais concursados e que não sejam militares. E não policiais que em determinados períodos estão na corregedoria e em outros não. Assim, correm riscos de retaliações”, elenca Alves.
Solução por políticas públicas
De acordo com Trindade, ao propor medidas para o Legislativo, o Pacote Anticrime não detalha a responsabilidade do Executivo para a segurança pública. Para o especialista, uma alternativa seria promover um Sistema Único de Segurança Pública, articulado pelo governo federal. “A segurança é responsabilidade dos estados e municípios, mas o governo federal pode e deve propor práticas de melhorias por meio de políticas”, aponta.
“Diminuir a criminalidade criando ou mudando leis penais é a proposta mais barata e menos eficiente. Aparenta uma resposta para a sociedade, mas na prática não altera nada. O gargalo não está nas leis”, acrescenta Neves.
Alves defende a modernização das corregedorias e investimento em formação de direitos humanos para os agentes. “São necessárias aulas sobre o tema com representantes de entidades da sociedade civil da área e não como é hoje, com professores da própria polícia. Atualmente, os agentes leem e decoram legislações, sem efeitos práticos na atuação”, finaliza.
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