Bastante mencionada em campanhas de desinformação, a Lei Roaunet (8.313/1991) é uma lei de fomento que visa a estimular a cultura no país. O nome faz referência ao seu criador, o então secretário de cultura do Brasil, Sérgio Paulo Rouanet.“As leis de fomento buscam viabilizar o acesso da população a bens culturais, profissionalizar o setor, movimentar empregos e o turismo local. Elas existem em diversos países do mundo e podem ser no âmbito federal, estadual e municipal”, resume a produtora cultural e docente na área de Comunicação Liene Saddi.
No Brasil, a Lei Rouanet é fundamental para o desenvolvimento e manutenção da cultura. “Ela possibilita a preservação de grandes instituições, museus e acervos que contêm nossa memória. Além disso, por meio dela, são realizados festivais de literatura, cinema, bienais, exposições, eventos de teatro, dança, música e outras expressões artísticas voltadas a diferentes públicos”, defende Saddi.
“Por exemplo, publicar um livro com muitas fotos e capa dura é extremamente custoso e se torna possível com o aporte da Lei Rouanet. Logo, é uma lei importante para os artistas, sobretudo os pequenos”, enfatiza a doutora em ciências sociais aplicadas pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) e pesquisadora de patrimônio cultural Barbara Cristina Kruse.
Como funciona?
A lei funciona como uma parceria público-privada, a partir de um mecanismo de incentivo fiscal. “O setor privado, seja pessoa física ou jurídica, pode incentivar um projeto cultural e, posteriormente, abater o valor no imposto de renda (IR). Essa modalidade é chamada de incentivo/mecenato”, resume Kruse.“Para a empresa, outro benefício é o marketing cultural, em que ela adiciona sua logomarca nos projetos patrocinados”, acrescenta.
Além do incentivo/mecenato, a Lei Rouanet possui outras duas modalidades menos conhecidas: o Fundo Nacional de Cultura, que é o apoio direto do Estado a projetos inscritos em editais; e o Ficart, que são fundos de captação com investidores de mercado. “Este último, porém, não foi implementado”, diferencia Saddi.
Modalidade mais popular, o mecenato funciona com produtores culturais elaborando um projeto e o submetendo à analise do Ministério da Cultura (Minc) e da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC).
A apresentação é realizada online, no Sistema de Apoio às Leis de Incentivo à Cultura (Salic). Se aprovado, o projeto é autorizado a captar recursos junto às empresas e pessoas físicas (chamados de incentivadores). Para pessoa jurídica, o limite de desconto é de até 4%, apresentado na Declaração Anual de Ajuste do Imposto de Renda. Para pessoa física, o limite é de 6%. “Qualquer produtora sediada no Brasil há pelo menos dois anos com o CNPJ condizente com a produção de atividades culturais pode enviar projetos”, acrescenta Saddi.
O projeto precisa conter objetivo e justificativa quanto à sua relevância cultural, além de orçamento, ficha técnica, cronogramas e medidas de acessibilidade. Segundo Kruse, a captação de recursos é a fase mais difícil do projeto. “Ainda que aprovados, muitos não conseguem ser executados no prazo máximo de 36 meses pela falta de recursos. Nesse caso, o valor arrecadado pode ser encaminhado ao Fundo Nacional de Cultura”, acrescenta.
Transparência é ponto forte
Após o projeto ser aprovado e realizado, há a prestação de contas do que foi arrecadado e gasto por meio de comprovantes de receitas, que pode ser acompanhada no Salic e no Portal da Transparência. Também é produzido o relatório final, que conterá a síntese de todas as ocorrências do projeto e avaliação de resultados.
“Caso o relatório não seja aprovado, poderá ser instaurado um processo de Tomada de Contas Especial e a respectiva inscrição no Cadastro Informativo de Créditos Não Quitados do Setor Público Federal (Cadin)”, explica Kruse.
Por conta do seu mecanismo de prestação de contas, a Lei Rouanet é considerada pelas especialistas como mais transparente do que a contratação de grandes shows por prefeituras sem licitação, por exemplo.“Todos os processos são disponibilizados online e, ao cobrar do produtor a prestação de contas de todas as etapas e as respectivas notas fiscais sob pena de judicialização pelo Tribunal de Contas da União (TCU), a lei tenta garantir a aplicação correta dos recursos”, pondera Saddi.
Pontos a melhorar
A Lei Rouanet sofreu alterações entre 2019 e 2022, quando houve reduções nos tetos dos valores de projetos, cachês artísticos e das diárias para locação de espaços culturais. O cachê de um artista solo, por exemplo, caiu de R$ 45 mil para R$ 3 mil. As medidas renderam críticas.“Um cachê de até três mil reais a um artista que passa meses envolvido na pesquisa e criação de uma obra inviabiliza muitos dos projetos do setor”, lamenta Saddi.
Ela explica que existem tetos diferentes dependendo do tipo do projeto, que pode ser de ‘tipicidade normal’; de ‘tipicidade singular’ (como desfiles, exposições e festivais) e ‘tipicidade específica’ (óperas, museus e bienais). “Ainda assim, trata-se de pouco investimento para estimular a cutura do país. Lembrando que são recursos de dedução fiscal das empresas e não de recursos que sairiam diretamente dos cofres públicos, ou seja, isso também desestimula o envolvimento do setor privado junto à área cultural”, destaca Saddi.
Já o uso do Fundo Nacional de Cultura para fomentar projetos é marcado por contradições nas liberações de verbas.“Houve ausência dos repasses e atrasos de contratos para a manutenção da Cinemateca Brasileira, cujo incêndio em 2021 simbolizou o descaso em relação à preservação do acervo, em contraste com a liberação de 3 milhões, no mesmo ano, para a digitalização do acervo da TV Record”, compara Saddi.
Para Kruse, outro ponto a melhorar é o incentivo a projetos que não estão nas grandes capitais. “O marketing cultural que a lei proporciona faz com que os patrocínios tendam a permanecer no eixo Rio-São Paulo, enquanto projetos do interior ou pequenos ficam esquecidos ou são engavetados”, contextualiza.
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