O uso de verba municipal para a contratação de shows milionários, especialmente de cantores sertanejos, por municípios pequenos foi um assunto que mobilizou a mídia e redes sociais em maio e junho de 2022. Na internet, o tema ganhou a hashtag #CPISertanejo. Segundo o promotor de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais (MP-MG) Daniel de Sá Rodrigues tal prática pode apresentar problemas. “Dentre os principais, estão a contratação direta e sem licitação por meio de intermediários, quando a lei de licitações restringe a contratação com o próprio artista ou com seu empresário exclusivo”, descreve.

“Pode também haver superfaturamento dos contratos e a destinação de recursos para esse tipo de eventos em prejuízo da concretização de políticas públicas essenciais, principalmente nas áreas da saúde, educação e infraestrutura. Não é razoável, em especial quanto a municípios que se encontrem em estado de calamidade ou situação de emergência”, explica Rodrigues.

Leia também: Cultura é muito complexa para ser integrada ao Ministério de Cidadania, avalia especialista

Este foi o caso de Teolândia (BA), em estado de emergência desde 2021 quando assolada por chuvas. A Festa da Banana da cidade havia estipulado cachê de R$704 mil para uma apresentação única de um cantor. Já no município de São Luís (RR), foi acordado cachê de R$800 mil para um show avulso, sendo que a verba para merenda, transporte escolar e vigilância sanitária da cidade somadas não ultrapassava R$185,2 mil.

Promoção à cultura

Assim como educação, saúde e habitação, a cultura também deve receber uma verba do município, que é prevista na Lei Orçamentária Anual da cidade. “Conforme consta na Constituição da República, é dever do Estado garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional. Ele deve apoiar a difusão das manifestações culturais que se caracterizam como um benefício a toda a população”, esclarece o promotor.

Nesse sentido, a realização de shows e eventos poderia ser considerada promoção da cultura. “Porém, não se mostra razoável a utilização pelo município da integralidade ou de parcela considerável das verbas destinadas à cultura na Lei Orçamentária Anual a um único show ou evento, o que levaria à insuficiência de recursos para outras ações culturais”, pontua.

Mesma opinião do doutor em cultura e sociedade pela Universidade de São Paulo (USP) e integrante do Observatório da Diversidade Cultural Juan Ignacio Brizuela. “Uma das dimensões de pensar o direito à cultura é possibilitar que as pessoas tenham acesso a suas diversas linguagens, como teatro, dança, gastronomia regional etc. Porém, é necessária fruição, ou seja, que esse direito ocorra constantemente e não uma vez por ano, em um único megashow”, diferencia.

“É diferente pensar em investimento de cultura em um evento específico, que começa e finaliza, e em investir esse recurso em um circuito amplo e que terá continuidade. Como possibilitar, por exemplo, garantir professores de linguagens artísticas diversas nas escolas públicas, ou que essa cumpra a legislação sobre oferecer cultura indígena e afro-brasileira aos alunos”, exemplifica.

Segundo Brizuela, a concentração de recursos para grandes eventos é característica de diversas prefeituras ao longo do Brasil. Mas se a contratação de shows milionários não viabiliza o direito à cultura, porque ela é realizada? “A prática, ao trazer para a cidade artistas reconhecidos, apresenta retornos de visibilidade e legitimidade política para prefeitos e gestores. É um espetáculo que chama atenção e gera boas fotos que serão reproduzidas em outros contextos, como mídia e redes sociais”, opina o especialista.

Recursos da mineração

Outra problemática é a origem dos recursos que custeiam os megashows. Na cidade de Conceição do Mato Dentro (MG), a prefeitura alegou que a contratação de um único show de um cantor sertanejo no valor de R$1,2 milhões foi realizada utilizando recurso da Compensação Financeira pela Exploração Mineral – CFEM, com o intuito de fomentar o turismo local.

“O minério é um patrimônio da União, que autoriza as mineradoras a extraírem e comercializarem. O CFEM é um pagamento que mineradoras fazem para compensar a União dessa extração, ou seja, é um royalt”, resume o professor do Grupo Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Bruno Milanez.

Segundo Milanez, do ponto de vista legal, o uso do CFEM é flexível e permitiria a aplicação em eventos culturais. “O problema é que a cidade fica dependente da mineração e uma hora tal recurso esgota. O ideal seria utilizá-lo para diminuir essa dependência, investindo em outras atividades econômicas”, descreve.

“Pensar no turismo seria uma possibilidade, mas o investimento em uma megashow não gera infraestrutura a longo prazo. A prefeitura está fazendo apenas custeio: paga-se o show, as pessoas assistem e vão embora”, opina. Milanez é coordenador do projeto De Olho No CFEM, que busca mapear se o uso desse recurso retorna à população. Em nota técnica de 2021, o projeto considerou como inadequada a forma como as prefeituras de Conceição do Mato Dentro e de outras duas cidades mineiras destinam essa verba.

“Nos três municípios analisados, observou-se que uma parcela expressiva da população vive em situação de profunda vulnerabilidade e sem qualquer perspectiva de renda. Mesmo com a injeção de capital vinculada à CFEM, os recursos não têm dinamizado as economias locais a ponto de garantir uma qualidade de vida adequada para essas populações”, pontua a nota.

Pouca transparência

A prática de contratação direta de shows entre município e cantores pode fomentar ainda casos de desvio de verba e corrupção. Para Brizuela, esse tipo de contratação tem menos possibilidade de monitoramento do que a Lei Rouanet (Lei Federal de Incentivo à Cultura, nº 8.313/1991). Esta permite que pessoas físicas e jurídicas encaminhem parte de recursos que seriam destinados ao pagamento do Imposto de Renda (IR) para peças, shows e outros eventos culturais.“A lei Rouanet tem melhores processos para acompanhar a gestão desse recurso”, assinala.

Para o pesquisador, porém, tanto a contratação direta quanto a Lei Rouanet pecam em não democratizar a cultura, privilegiando poucas produções. “É diferente da Lei Aldir Blanc (nº 14.017/2020), que distribui recursos para iniciativas culturais diversas e de forma hipercapilarizada. Ela também possui ferramentas de gestão pública e transparência, como o Plataforma +Brasil e participação dos conselhos municipais de cultura”, elogia.

No caso dos contratos diretos, os municípios exercem fiscalização por meio de suas controladorias ou outros órgãos com atribuição fiscalizatória. “O controle externo é realizado pela Câmara de Vereadores e pelo Tribunal de Contas do Estado”, explica Rodrigues.

A sociedade também pode acompanhar os gastos da administração por meio da imprensa, e portais da transparência. Em caso de indícios de irregularidade, o Ministério Público pode ser acionado, o que aconteceu no caso das cidades mineiras e baianas. “Ele exerce seu mister constitucional de defesa do patrimônio público e da probidade administrativa”, finaliza Rodrigues.

Veja mais

Preservar a Cinemateca Brasileira é garantir a memória audiovisual do país, defende especialista

Coletivo oferece oficinas para jovens conhecerem diferentes linguagens artísticas

Talvez Você Também Goste

Barriga solidária beneficia diferentes modelos familiares

Conheça histórias de pessoas que gestaram bebês de amigos e parentes

Laqueadura e vasectomia pelo SUS preservam direito de quem não quer ter filhos

Lei reduziu idade mínima e retirou obrigatoriedade de aval do cônjuge para realizar procedimentos

13 dúvidas sobre os direitos do trabalhador que pediu demissão

Advogados esclarecem mitos e verdades desse modelo de rescisão contratual

Receba NossasNovidades

Receba NossasNovidades

Assine gratuitamente a nossa newsletter e receba todas as novidades sobre os projetos e ações do Instituto Claro.