Tornar-se mochileira permitiu a Josefa Feitosa, 65 anos, conhecer o mundo. O estilo de vida, porém, só pôde ser alcançado aos 56 anos, aposentada e já com os filhos adultos.

“Desde criança queria viajar. Eu morava perto da estação de trem de Juazeiro do Norte (CE), cidade turística pela religiosidade, e via as pessoas indo e vindo nos trens. Quando meu pai me perguntou o que gostaria de ser quando crescesse, respondi: ‘passageira’”, diverte-se.

Quando jovem, ela veio para São Paulo cursar Serviço Social e fez as primeiras viagens rumo a congressos de estudantes. “Depois disso, vieram o casamento e os filhos, que tornaram o sonho de viajar mais difícil. Contra isso, eu presenteava cada filho com uma viagem que pudesse parcelar e na qual fosse possível ir junto”, relembra.

Quando Feitosa finalmente iniciou suas viagens, aos 56 anos, hospedando-se em hotel e comprando passeios turísticos, percebeu que seu dinheiro não rendia.

“Pessoas jovens começaram a me ensinar sobre hostels, locomover-se de transporte público e fazer passeios caros por conta própria. Depois disso, iniciei o meu primeiro mochilão com a meta de conhecer 20 países”, conta.

Nove anos depois, Feitosa já esteve em 76 nações e não pretende parar. “Fiquei um ano viajando e, ao retornar, vendi minha casa e aprendi a viver com o que tenho na mochila de dez quilos. Viajar o mundo não seria possível se não tivesse me tornado mochileira”, avalia.

Josefa Feitosa (Foto: arquivo pessoal)

Lidando com o medo

A escritora Vania Nacaxe, 65 anos, também iniciou seu primeiro mochilão aos 56, após enfrentar a morte do marido e um processo depressivo.

“Quando eu era jovem, minha única referência eram os hippies mochilando. Então, resolvi pegar o dinheiro que tinha e fazer um mochilão pela Europa.”

O primeiro passo foi vencer o medo e os estigmas. “Iniciei pela Alemanha sem falar o idioma, apenas inglês. Havia o estigma de que os hostels eram perigosos, repletos de jovens e que as pessoas não eram legais. Na primeira noite em um quarto sozinha, tranquei a porta e a bloqueei com uma cadeira. Cheguei a Munique e ocorreu um atentado terrorista. Parecia que tudo conspirava para eu ter medo, mas resolvi seguir mesmo assim.”

Durante a viagem, ela descobriu que a língua não era uma barreira para viajar se usasse aplicativos tradutores no celular. “Além disso, mochilando, é possível fazer muita amizade. E a vida fica mais leve: você carrega o que tem, não precisa comprar presentes para os outros nem fazer compras”, reforça Nacaxe.

Preconceitos

Ser uma mulher mochileira com mais de 60 anos e, no caso de Feitosa, negra, exige lidar com diferentes preconceitos.

Quanto aos estereótipos de gênero, Feitosa lembra que mulheres são desencorajadas a viajar sozinhas, especialmente conforme envelhecem.

“No começo foi difícil porque não tinha referência, olhava os meninos viajando e achava que não era para mim”, relata.

Outro aspecto é rejeitar a construção social de que mulheres devem ser cuidadoras.

“Os filhos querem infantilizar a mulher idosa, querem que ela fique dentro de casa. Não se incomodam que ela cozinhe e passe roupas para eles, mas afirmam que ela ‘não tem condições’ de viajar por conta da idade”, afirma Feitosa.

Para ela, a relação com os filhos melhorou quando iniciou as viagens. “A gente tende a se meter na vida dos filhos. E essa é a melhor época para viajar: não tem pai e mãe para cuidar, os filhos já estão adultos.”

Vania Nacaxe (Foto: arquivo pessoal)

“Em relação ao etarismo, as pessoas acham que, por ser mais velha, a pessoa precisa de muita coisa, vai atrapalhar. Já fui barrada em hostel que não aceitava pessoas com mais de 50 anos. É comum pessoas olharem atravessado, pedirem para sair do quarto coletivo, principalmente grupos de meninas”, relata Feitosa.

“É comum não me atenderem na recepção, deixarem por último na hora da refeição, essas coisas”, acrescenta.

Porém, as viagens também permitiram que Feitosa vivenciasse outras experiências. “Pude entrar em um avião apenas com pessoas pretas na Jamaica, ver famílias pretas de classes sociais mais altas jantando em restaurantes. Como já vivenciei muito preconceito na vida, foi lindo poder passar um tempo sem perceber que existe racismo no mundo”, conta.

Já Nacaxe relata que vivenciou mais etarismo no Brasil. “As pessoas diziam que eu era louca por mochilar, que seria assaltada, que não teria joelho para aguentar uma caminhada”, conta.

Ao comparar presente e passado, ela diz enxergar uma mudança na forma como se relaciona com as viagens.

“Com meu marido, tinha sempre uma companhia para carregar mala, alguém para conversar e dar bom dia. Para a mulher madura, não vivenciar a solidão pode ser perigoso. Você pode arrumar qualquer companhia por medo de ficar sozinha e vivenciar relações de abuso”, opina.

“Viajantes com mais de 60 anos sabem que, ainda que haja os filhos, não existe tanto suporte. É o oposto de quando se é jovem e se pode contar com os pais.”

Dicas para iniciar

Tanto Feitosa quanto Nacaxe buscam estimular outras mulheres 60+ a viajarem. Para Feitosa, a primeira orientação é conhecer o básico da tecnologia.

“Eu não falo nenhum idioma; preciso de tecnologia para me comunicar, usar mapas e converter moedas. Também me viro com um pouco de inglês e espanhol que aprendi nas viagens”, aponta Feitosa.

Porém, há muita solidariedade. “A idade chama atenção, as pessoas querem ajudar mais. Além disso, minha coragem vem da minha vulnerabilidade: não tenho problema de perguntar, de pedir ajuda”, acrescenta.

Nacaxe viaja com doleira e cópia do passaporte e de documentos na bota, assim como cópias de endereços de embaixadas e hospitais. “Recomendo fortalecer a panturrilha, ter um calçado legal e evitar reclamar, porque imprevistos acontecem”, orienta.

Já Feitosa viaja sem roteiro, escolhendo apenas a parte que quer desbravar. Seu último trajeto foi fazer a América Central de ônibus até Cuba. “Se você tem tempo, tem economia, pode viajar no momento que a passagem está mais econômica.”

Porém, elas lembram que não é preciso ser mochileira para a mulher 60+ vivenciar novas experiências, ser independente e feliz. “O segredo é fazer o que se gosta. No meu caso, eu gosto de viajar”, finaliza Feitosa.

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Crédito da imagem: Royalty-free – Getty Images

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