O Boletim Epidemiológico de HIV/Aids 2025, do Ministério da Saúde, apontou 1.679.622 pessoas vivendo com o vírus no Brasil entre 1980 e setembro de 2025. Em 2024, a proporção era de dez mulheres para cada 28 homens.

Para as mulheres, houve ganho de qualidade de vida proporcionado pelo tratamento. O conceito indetectável igual a intransmissível (I=I) mostrou que, quando a carga viral está controlada pelo tratamento, quem vive com HIV não transmite o vírus por via sexual.

“A medicação é mais acessível e temos uma vida normal, como qualquer condição crônica”, analisa a maquiadora e estudante de ciências socias Joseane Portalupi, de 34 anos.

No âmbito social, porém, há desafios. “Houve melhora na forma como geralmente somos acolhidas nos Centros de Referência de Tratamento de IST/Aids (CRT) e até por parceiros. Mas há inseguranças, medo de rejeição e preconceito, que causam sofrimento mental intenso; necessidade de autoafirmar nosso valor e de se eximir de culpa. Além disso, a dúvida sobre para quem e como contar é constante”.

Estigma da promiscuidade

Vivendo abertamente com HIV, Portalupi também pesquisa como o estigma afeta as mulheres dessa população. “Os estigmas ainda associam o HIV à promiscuidade e reproduzem a imagem dos anos 1980, marcada pela ideia de ‘peste’. Isso é agravado pela falta de narrativas atuais sobre quem vive com o vírus. Há também a ideia de que somos ‘guerreiras’, o que é igualmente estigmatizante”, pondera.

Escritora e palestrante, Thais Renovatto, de 41 anos, vê o impacto do estigma em todas as áreas de vida da mulher que vive com HIV.

“Inicia na família, com julgamento, abandono e isolamento. No trabalho, surgem o medo de exclusão, fofocas, demissão ou falta de promoção. O medo da exposição pode afastar dos serviços de saúde. Isso alimenta culpa, isolamento, prejudica a saúde mental e pode dificultar a adesão ao tratamento”, complementa.

Joseane Portalupi (esquerda) e Thais Renovatto (Foto: arquivo pessoal)

Contar ou não contar?

Portalupi recebeu o diagnóstico há oito anos. “Tive apoio de amigos e do meu parceiro da época, mas ocultei dos demais. Existe um processo de aceitar essa nova identidade, sem se resumir a ela, e lidar com o estigma sobre si mesma. Ainda estava entendendo tudo, me julgava”, compartilha.

Renovatto decidiu tornar sua sorologia para HIV pública ao perceber que seus conhecimentos sobre o vírus, até então, eram incorretos.

“Eu não posso chegar em uma roda do trabalho e as pessoas falarem ‘hum, ele está magro porque está com Aids’ e me calar. Se detenho informação, preciso compartilhá-la. Com coragem, coloquei em prática com as pessoas próximas, e isso me fortalecia”.

Ainda assim, ela relata preconceitos no trabalho. “Ao sair do banheiro, uma menina que estava na fila se recusou a entrar na minha cabine. Mesmo sabendo que eu gerei duas crianças negativas do vírus sendo positiva”.

‘Obrigação’ de educar parceiros

O relacionamentos afetivo com pessoas que não possuem o vírus (chamadas relações sorodiscordantes) é outro fator de angústia. Segundo Portalupi, a vontade de não esconder algo importante sobre si e o medo de rejeição entram em conflito.

“O estigma da promiscuidade e o medo do julgamento fizeram uma entrevistada da minha pesquisa mentir para o companheiro que tinha adquirido o vírus por transmissão vertical (via parto), e não pelo sexo. Isso gera sofrimento e culpa”.

Ela também levantou em entrevistas que as reações de parceiros variam entre pânico, rejeição, abandono e ameaça de violência. “Até sobre ameaça de morte eu ouvi. Isso faz mulheres decidirem não mais se relacionar”, lamenta Portalupi. “Porém, acolhimento do parceiro traz sensação de alívio, validação e aprofundamento do vínculo”, adiciona.

“Comigo, já teve gente que chorou, ficou em estado de choque, sentiu-se ‘enganado’. Só que sofrer uma violência e ainda ter que educar a pessoa à sua frente é cansativo. Dá vontade de mandá-la pesquisar”, desabafa Portalupi.

“Hoje, falo normalmente sobre minha sorologia no primeiro encontro e nas minhas redes sociais; mas, claro, sempre dá medo”, acrescenta.

Desinformação sobre maternidade

O Boletim Epidemiológico de HIV/Aids 2025 apontou a inédita eliminação da transmissão vertical no país. Isso porque a mulher que aderiu ao tratamento antirretroviral e está indetectável também não transmite o vírus no parto. Entretanto, o estigma de que essa população não pode maternar persiste.

“No nascimento do meu primeiro filho, as enfermeiras não sabiam como agir. Uma chegou com uma prancheta dizendo: ‘Você é do HIV?’ Além disso, médicos desencorajam a mulher que vive com HIV de ser mãe ou sugerem inseminação artificial. Ainda hoje recebo haters dizendo que sou irresponsável por ter filhos”, expõe Renovatto.

O preconceito também aparece em outros equipamentos de saúde. “Tive um ginecologista sorofóbico (preconceito contra quem vive com HIV) e invasivo. Ele me olhava com espanto e perguntou como eu tinha pegado. Isso aconteceu neste ano e me deixou mal, comprovando que nunca estamos 100% resolvidas”, compartilha Portalupi.

“O medo se torna um companheiro com o qual a gente aprende a conviver, porque todo dia é novo e traz encontros inéditos”, acrescenta.

Representatividade nas redes

Apesar da falta de narrativas audiovisuais atuais com mulheres vivendo com HIV, Portalupi vê essa lacuna sendo minimamente suprida nas redes sociais. Renovatto, por exemplo, compartilha o dia a dia com o marido e os filhos, negativos para HIV.

“Essa presença significa muito, pois mostra a vida real e não o imaginário dos anos 1980”, opina Portalupi, que também cita a importância de grupos de apoio para mulheres que vivem com HIV.

“Percebo que elas querem falar e ser ouvidas, mas em ambiente seguro. Poder sair com uma amiga que também vive com HIV e falar abertamente sobre faz bem”, afirma Portalupi.

Incluir as mulheres nas políticas públicas de prevenção também é um desafio do momento presente.

“Ao focar nas chamadas populações-chave — como homens que fazem sexo com homens, trabalhadoras sexuais, mulheres trans e pessoas que usam drogas injetáveis — exclui-se a percepção de que a população heterossexual e cisgênero também está vulnerável. Por isso, pensar o HIV a partir de comportamento de risco, ampliando testagem, informação e cuidado para todas as pessoas sexualmente ativas, ajudaria”, opina a pesquisadora.

Tratamento com empatia

Sobre como agir com mulheres que vivem com HIV, Portalupi dá algumas orientações. “Nunca pergunte como uma pessoa adquiriu o vírus, o que é invasivo e violento, especialmente em casos de violência sexual e traições. Quem o faz atribui culpa e moraliza a pessoa que vive com HIV, quando todos com vida sexual não estão livre de adquiri-lo”.

Ela também lembra da Lei n°12.984/14, que proíbe discriminação com pessoas que vivem com o vírus, garante o sigilo sobre a sorologia e criminaliza sua exposição por terceiros.

“E caso aconteça de você se infectar, mantenha a calma e busque um CRT. Tudo ficará bem”, aconselha.

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Crédito da imagem: arquivo pessoal

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