O brasileiro tem pelo menos dois direitos em relação a dados. O primeiro é solicitar dados públicos municipais, estaduais e federais, incluindo as despesas de instituições. Este é garantido pela Lei de Acesso à Informação, a LAI (nº 12.527/2011). O segundo é controlar dados particulares que estejam nas mãos de empresas. Isso inclui saber sobre seu armazenamento e solicitar exclusão de cadastros. Tal direito é garantido pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, a LGPD (nº 13.709/2018).

“Para que a administração pública cumpra sua função, é importante o controle da sociedade. A abertura dos dados esclarece atividades e gastos do governo e contribui para a melhoria da gestão pública, além de dificultar corrupção”, explica o presidente da Comissão de Privacidade e Proteção de Dados da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo (OAB-SP) Solano de Camargo. “O problema é que o governo federal tem se utilizado indevidamente da LGPD como desculpa para violar a LAI”, alerta.

Levantamento da Agência Fiquem Sabendo apontou 79 pedidos de informações públicas feitos via LAI negados com base na LGPD. Destes, 39 tiveram a negativa mantida pela Controladoria-Geral da União (CGU) e a Comissão Mista de Reavaliação de Informações (CMRI), órgãos que dão a palavra final sobre o tema.

Leia também: Proteção de dados: cartilha do Procon-SP explica legislação e direitos

Camargo lista as negativas que fizeram uso indevido da LGPD: “A Secretaria-Geral da Presidência impôs sigilo de cem anos sobre quais filhos de presidentes tiveram crachás de acesso ao Palácio do Planalto desde 2003; sobre a carteira de vacinação do presidente Jair Bolsonaro, o que reforçou a desinformação durante a pandemia; e ao processo administrativo referente à participação do então ministro da saúde, Eduardo Pazuello, em ato político que provocou aglomeração na fase aguda da pandemia”. Ele ressalta que a lei também foi utilizada para não fornecer informações de “gastos milionários com cartão de crédito corporativo; pagamentos realizados pela Caixa Econômica Federal a um locutor de rodeios e sobre as tratativas de compra das vacinas contra a covid-19”, aponta.

Exclusão de dados traz consequências

Em fevereiro, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) usou a LGPD como justificativa para suprimir microdados do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e do Censo Escolar da Educação Básica. “Isso impossibilita pesquisas e políticas públicas de educação, inclusive, relacionadas ao impacto da pandemia sobre os alunos”, analisa Camargo.

O mestrando da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Danilo Augusto Kanno Nogueira Baptista teve sua pesquisa afetada. “Uso métodos estatísticos para avaliar se existe relação entre os partidos políticos dos prefeitos e o aumento de matrículas privadas ou públicas durante o tempo do seu mandato”, revela. Ele explica que os microdados traziam detalhes que possibilitavam saber quantos computadores há em uma escola ou se ela conta com coleta de lixo. “Ao prejudicar as pesquisas acadêmicas, prejudica-se a produção de conhecimento que promove melhorias na sociedade”, enfatiza.

Os pesquisadores apontam ainda uma tentativa de colocar sigilo nas doações de campanhas eleitorais usando a LGPD. A pauta é analisada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). “Isso impossibilitaria descobrir interesses e exercer o controle social sobre as candidaturas. Na prática, dificulta a escolha do voto, ou seja, do cidadão estar bem informado para tomar uma decisão”, analisa a coordenadora da área de acesso à informação da ONG Artigo 19, Júlia Rocha.

Ela aponta que efetivar direitos humanos depende do acesso à informação. “Por sua vez, essas negativas violam o direito à informação e à participação política”, ressalta. Para a cientista social, o governo se vale de uma interpretação equivocada do artigo 31 da LGPD. “Porém, o próprio dispositivo explica que toda informação tida realmente como sigilosa deve ser justificada”, salienta. “O governo argumenta que, nos casos de dados pessoais, o acesso à informação pode ser negado sem justificativa. Em muitas situações, sequer foi emitido o termo de decretação de sigilo para censurar informações públicas”, acrescenta Camargo.

Investidas contra as leis

Camargo conta que, além do uso da LGPD para barrar a LAI, também houve ataques a ambas. “O Decreto 9.960/2019 alterou a aplicação da LAI no Executivo Federal, ampliando o grupo de agentes autorizados a censurar informações públicas. Este foi revogado após pressão social”, relata Camargo.

No mesmo ano, o presidente Jair Bolsonaro vetou o trecho na LGPD que assegurava a proteção de dados das pessoas que apresentassem pedidos de acesso a informações. A Medida Provisória 928/2020 suspendeu os prazos de atendimento a pedidos de informação determinados na LAI, sem possibilidade de recurso. Esta foi revogada no Supremo Tribunal Federal (STF).

Ainda sobre transparência nas informações, o presidente vetou o §5º do art. 174 da nova Lei de Licitações (2021), que determinava a criação da Base Nacional de Notas Fiscais Eletrônicas. “Ela tornava acessíveis à sociedade documentos de compras e contratações públicas. Também foi vetado o trecho que obrigava a publicação de editais de licitação em jornais de grande circulação, posteriormente derrubado pelo Congresso”, conta Camargo.
Rocha explica que não há brechas na LAI ou na LGPD que justifiquem tais ações: “Ambas são redondas. Não se deve negar, por exemplo, dados pedidos via LAI usando um marco normativo diferente. O que há é uma interpretação equivocada e intencional”.

A cientista social acredita que deveria haver aplicações de sanções administrativas previstas nos dispositivos das leis: “Seriam ainda necessários fiscalização e diálogo mais próximos com a CGU”. Camargo salienta que pode ser também o caso de intervenção do Ministério Público: “Inclusive, penalizando os órgãos responsáveis, visto que tal condução pode ser considerada um ato doloso de má gestão administrativa”, conclui.

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