Há 25 anos, Ivanise Esperidião da Silva Santos viu a filha Fabiana desaparecer após visitar uma vizinha. “Comecei a buscar imediatamente nas imediações. Esgotada, fui à delegacia procurando acolhimento e o delegado mandou voltar em 24 horas para registrar o Boletim de Ocorrência (B.O)”, relembra. Em 1996, Santos fundou o movimento Mães da Sé, que se reúne todos os anos em frente à catedral paulistana com fotos de familiares que sumiram. Desde então, ela viu o agravamento dos casos de desaparecimento sem solução, principalmente, pela falta de dados para embasar políticas de busca e prevenção.
“Como não há cadastro nacional ou estadual de pessoas desaparecidas, a quantificação é feita pelos B.Os emitidos”, explica a responsável pelo Programa de Pessoas Desaparecidas e suas Famílias, do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, Larissa Leite. Por meio dessa metodologia, a primeira série histórica do Anuário Brasileiro de Segurança Pública apontou 694.007 casos entre 2007 e 2016. A edição de 2021 trouxe números anuais menores devido à pandemia: 62.857 desaparecimentos e 31.996 localizações.
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“Porém, não sabemos se cada B.O é relativo a apenas um desaparecido; se os localizados são referentes aos desaparecimentos daquele ano ou de anteriores; e não conseguimos depurar informações fundamentais para enfrentar o problema, como perfil, circunstâncias e causas do desaparecimento”, resume Leite.
A subnotificação é destacada pelo coordenador da pós-graduação em sociologia da Universidade Federal de Goiás (UFG), Dijaci David de Oliveira. Como não é “crime” desaparecer no Brasil, delegacias podem negar ou dificultar o registro. “Não há uma compreensão clara de que os desaparecimentos sejam problema de segurança pública. O Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) diz que a polícia deve acolher e investigar os casos de menores, mas não há nada para adultos. Assim, muitos desaparecimentos não são registrados”, explica.
Um problema, muitas causas
Alguns aspectos caracterizam um desaparecimento. “Quando a família não sabe o que aconteceu com a pessoa; não há razão aparente para o sumiço; há sentimento de perigo ou quando é feito o registro na polícia”, lista Oliveira. Porém, incidentes diferentes são registrados sob essa mesma classificação. “É um fenômeno multifatorial, ou seja, pode ser produzido por acidente, surto, doença, homicídio, violência doméstica, policial, entre outros.”, exemplifica. Também não existe um sistema que cruze dados de pessoas desaparecidas e mortas. “O corpo de uma pessoa enterrada sem conhecimento da família é um potencial desaparecido”, reforça Leite.
Sobre o perfil da vítima, Leite vê diversidade de idade e gênero. Para Santos, pessoas da classe baixa são mais vulneráveis. “É o caso das crianças deixadas sozinhas porque os pais precisam trabalhar”, ilustra. Já Oliveira aponta 40% das vítimas como mulheres. “Em estados de fronteiras ou forte turismo, o quadro fica mais feminino”, alerta o pesquisador, que também destaca “fugas” de crianças e jovens por violência doméstica. “Políticas de enfrentamento devem passar por esse tema”, avalia.
Sem dados concretos, é difícil comparar a situação do Brasil com a de outros países. “Podemos afirmar que o número é alto em relação a outros crimes dentro do próprio país, como homicídio”, analisa Leite. “Em suma, é um fenômeno de grandes dimensões e sem dados exatos pela falta de um sistema que coordene instituições e órgãos públicos. A aproximação dessas engrenagens melhoraria as investigações”, acrescenta.
Perspectiva de cadastro
Atualmente, a Política Nacional de Busca de Pessoas Desaparecidas (PNBPD), criada pela Lei nº 13.812/2019, prevê a criação de cadastros estaduais e do nacional para apoiar o trabalho da polícia. Um comitê gestor de 34 pessoas foi criado, incluindo representantes do Ministério Público; conselhos tutelares; Ministérios da Justiça e da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MDH). “Será preciso definir protocolos e capacitar equipes”, assinala Leite.
Para Oliveira, a efetivação do cadastro esbarra em falta de recursos e pessoal capacitado. “Há uma equipe ativa, oriunda do sistema de segurança dos estados, que procura efetivar as chamadas ‘autoridades estaduais — organismos que estruturarão a política estadual conectada à nacional. Porém, está bem incipiente”, avalia. “Envergonha-me saber que o país tem um cadastro nacional de carros roubados e não um de pessoas desaparecidas”, desabafa Santos.
Buscando ajuda
Os especialistas observam que sem dados e com negligência policial, é comum as famílias encabeçarem as buscas. “Elas peregrinam por hospitais e Instituto Médico Legal (IML)”, lamenta Santos. Aos parentes, Leite indica comunicar o desaparecimento imediatamente à política, sem limite de tempo. Ela também recomenda buscar associações de familiares na mesma situação. “Eles poderão acolher, orientar e compartilhar experiências. Além disso, evite se colocar em situações de risco ao procurar informação”, aconselha.
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