A cada 100 mortes violentas intencionais no Rio de Janeiro, 23 são atribuídas à polícia. A média brasileira é de 11, enquanto o parâmetro de comparação internacional indica que um índice acima de 5 já é preocupante. Esses são dados de 2019 divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Como é possível aferir pelos números, a polícia militar (PM) no Brasil apresenta alta letalidade. Além disso, especialistas apontam um índice elevado também de impunidade nos casos de homicídios cometidos por policiais em circunstância escusas. É nesse contexto que se apresenta o debate sobre a desmilitarização da polícia no Brasil.

O principal motivo para a impunidade nesses casos são os chamados “autos de resistência”, um instrumento da época da ditadura militar que impede a prisão em flagrante de um agente que afirma ter matado para se defender. Uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Assembleia do Rio de Janeiro de 2019 apontou, porém, que 98% das mortes nessas circunstâncias no estado, entre 2010 e 2015, nem sequer foram investigadas. A desmilitarização da polícia costuma ser apontada como uma possível solução para reverter esse quadro. Para os especialistas em segurança pública ouvidos, no entanto, somente ela não resolveria o problema. “Depende do que se entende por desmilitarização, uma vez que cada definição terá consequências distintas”, resume a diretora de programas do Instituto Igarapé, Melina Risso.

“Tanto a polícia do Rio de Janeiro quanto a de São Paulo executam mais de mil pessoas por ano, sendo a maioria jovens negros. Uma situação inadmissível”, explica o professor da Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unifesp Bruno Konder Comparato. Segundo ele, além das execuções, há outros crimes menos visíveis, como torturas e agressões. “Sem julgamento ou punição, este policial pode ser promovido ou mesmo ter sua conduta incentivada. Ao final, temos uma população que teme a policia”, lamenta.

Vínculo com o exército

Para Risso, é preciso, em primeiro lugar, compreender o funcionamento da polícia brasileira, atualmente, dividida em civil e militar. “Pela constituição federal, a PM é uma reserva auxiliar do exército que pode ser acionada. Algo previsto na lei, mas não executado”, observa. Por essa razão, policiais militares estão sujeitos ao código de conduta da corporação, sendo investigados pela mesma em caso de desvios, sendo proibidos de realizar greve e contando com uma previdência diferenciada.

A atuação das duas polícias também é diferente. “A PM faz o patrulhamento ostensivo das ruas, ou seja, atendendo as ocorrências e dialogando com a população. Em caso de crime, é a policia civil que o investigará”, resume a pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da Universidade de São Paulo Fernanda Novaes.

Ao contrário do Brasil, a maioria dos países conta com a mesma polícia durante o ciclo completo da investigação, seja civil ou militar. “Na prática, vemos certa rivalidade entre os dois entes e resultados ineficazes”, pondera Novaes. No caso de um homicídio praticado por um policial militar, as provas colhidas pela Policia Civil são encaminhadas ao Ministério Público (MP).
“Este último é o ‘advogado do povo’, que tem a função de fiscalizar a atividade policial, pedir mais explicações e encaminhar o inquérito para um eventual julgamento”, acrescenta Risso. Ao entender a desmilitarização como a quebra do vínculo da PM com o Exército, pouca coisa mudaria. “Isso porque os militares não têm palavra e decisão final, uma vez que há outras instâncias no processo, como MP e Judiciário. Na prática, mudaria a questão da previdência”, analisa Risso.

Estética do herói

A militarização, porém, também pode ser entendida como “modo de operar” da polícia. Segundo Comparato, trata-se de uma estrutura de poder centralizada e que não permite questionamentos. Além disso, compreende afastamento da sociedade e treinamento para a guerra.“É uma estética do herói ensinada na academia que coloca o policial militar como um justiceiro da sociedade, que irá combater o que há de errado nela sozinho. Um treinamento da época da ditadura militar que fala em combater inimigos internos”, enfatiza.

Novaes lembra que essa forma de atuar não é somente vista na policia militar, mas também na civil. “Assim, transformar toda a polícia em civil não alteraria o problema”.
Para Comparato, nesse modelo, a ação da polícia é voltada contra pessoas, não contra condutas criminais.“Um exemplo é quando grupos de extermínio da polícia executam, nas periferias, pessoas com antecedentes criminais. Se ela não estava naquela hora cometendo um crime, o passado dela não importa”, alerta Risso.

Revisando o modelo

Para todos os especialistas, o treinamento e a estrutura da polícia – independente de ser militar ou civil – precisariam ser revistos para colocar um fim na alta letalidade e na impunidade.“A maioria dos chamados que a PM atende é de conflitos cotidianos, entre casais, vizinhos, etc. Isso exige conversa e jogo de cintura, algo que a estrutura hierárquica e pouco democrática da corporação não propõe. Ou seja, o agente é treinado em um ambiente incompatível ao trabalho que precisará desenvolver”, lembra Novaes. Membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Rafael Alcadipani concorda. “Independente de ser civil ou militar, a formação garantirá uma policia menos violenta, mais próxima do cidadão e mais humana”, descreve.

Países que adotam esse modelo colhem bons resultados, como aponta Comparato. “França, Canadá e Itália possuem polícias igualmente militares que não são tão bélicas quanto a nossa. O policial é realmente visto como um funcionário público com autorização para andar armado, mas que precisa usar sua força com critério”. Para os especialistas, o treinamento preventivo evitaria que execuções acontecessem. “Ajudaria a mudar a percepção de que todos os negros e moradores da favela são bandidos”, diz Risso.

Para completar, revisar a lei que criminaliza usuários de drogas e investir em modelos em que o policial atue mais próximo da sociedade também colaborariam. “É o caso das pequenas cidades do interior, na qual o policial é conhecido por todos e se torna uma referência para a comunidade”, exemplifica Risso.

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