A nova lei antidrogas brasileira foi sancionada em 5 de junho de 2019 trazendo como mudanças o incentivo à internações para tratamento contra a vontade do usuário (internações compulsórias) e às comunidades terapêuticas, “clínicas” religiosas que focam na abstinência e no isolamento do dependente. Vinte e oito dessas alterações foram alvo do Ministério Público Federal, em 2018, por violações como privação de liberdade, tortura e trabalhos forçados.
Além disso, a nova legislação não alterou o artigo 28 da Lei 11.343/2006, que considera crime o porte de drogas para uso pessoal. O Supremo Tribunal Federal (STF) analisa a inconstitucionalidade da medida, sem prazo definido para votar a pauta.
As diretrizes brasileiras, contudo, são opostas às praticadas por Portugal desde 2000, quando entrou em vigor a “Estratégia Nacional de Luta Contra as Drogas”. O programa visava acabar com a epidemia de usuários de heroína no país, que crescia desde a década de 1980, gerando criminalidade, mortes por overdose e crescimento de contaminações por HIV.
Um dos seus idealizadores foi o médico João Goulão. Ele conta que a repressão e a censura da ditadura salazariana (1933-1974) postergaram a chegada das drogas no país.
“Ao mesmo tempo, ocorria a Guerra pela Libertação das Colônias (Angola, Guiné-Bissau e Moçambique, entre 1961 e 1964) onde o uso de substâncias ilícitas pelos soldados era alto e, muitas vezes, estimulado. Com o retorno dessas tropas e uma população não educada para lidar com as drogas, o consumo de substâncias como a heroína explodiu”, contextualiza.
Problema de saúde
Segundo o especialista, a taxa de viciados em heroína atingiu 100 mil pessoas e matava, anualmente, 360 pessoas por overdose.
“O problema era transversal e afetava todas as classes sociais, apesar de ser mais acentuado nas populações vulneráveis. Era impossível encontrar uma família portuguesa que não enfrentasse a questão dentro de casa”, diz.
O que seria um desafio acabou sensibilizando a sociedade. “As pessoas perceberam que o problema não era com o filho do outro, mas com o seu. Isso mostrou que não se tratava de uma questão criminal, mas de saúde e que necessitava de uma abordagem humanizada.”
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Centros de referência para incluir os usuários no sistema de saúde foram criados, assim como programas de redução de danos (RD), importantes no fortalecimento de vínculo dos médicos e assistentes sociais com o doente. Ao contrário de pregar a abstinência total, tal modalidade possibilita o consumo de drogas com supervisão médica, materiais descartáveis e em ambientes seguros. Além disso, a heroína pode ser substituída por outras substâncias.
“Clínicas particulares foram regularizados a partir das mesmas normas nacionais dos centros públicos. Assim, passaram a integrar um mesmo sistema”, reforça.
Outro ponto importante foi que os dependentes deixaram de ser tratados como criminosos pela polícia. A quantidade permitida para posse de droga por usuário era referente a 10 dias de consumo, regularizada por tabelas.
“Ou seja, é proibido usar drogas, mas não um crime. Se o usuário autuado fizer uso recreativo, ele será esclarecido. Se já for um dependente químico, será tratado.”
Para completar, a internação compulsória também não é praticada. “É preciso estimular a motivação do usuário para se tratar”, contrapõe.
Como resultado, a quantidade de usuários caiu para 50 mil, sendo 30 mil em tratamento nos dias de hoje. “O sistema foi expandido para outras dependências, como álcool e jogos”, comemora Goulão.
Criminalização em discussão
A Alemanha sofreu os mesmos problemas que Portugal no final da década de 80 em relação à heroína. A região do parque de Taunusanlage, em Frankfurt, chegou a concentrar 1,5 mil dependentes. Assim como os portugueses, a RD e a inclusão dos usuários no sistema de saúde ajudaram a extinguir o local.
“Hoje, temos um sistema bom, com salas de consumo de drogas no país para tratamento de substituição [quando ela é substituída por outra substância]. Dependentes químicos que antes morriam aos 40 anos chegam aos 70”, descreve o assessor para drogas e sistema penal da organização de combate à aids, Deutsche Aids-Hilfe (DAH), Dirk Schäffer.
A Alemanha possui hoje 80 mil usuários de drogas tratados por substituição da substância. “É a metade dos dependentes”, explica o especialista. A descriminalização do porte, contudo, ainda é discutida pela sociedade.
“Penso que a criminalização fracassou. As detenções aumentaram de 250 mil para 350 mil nos últimos cinco anos, assim como as mortes de dependentes. Presos, eles continuam com o vício nas casas de detenção”, detalha Schäffer. “Nosso objetivo é que o atual governo olhe detalhadamente para o modelo português e altere isso”, vislumbra.
Novas drogas também surgiram no cenário alemão nos últimos anos, como anfetaminas, MDMA e crystal meth. A maioria vinculadas à vida noturna.
“Seus usuários não se enxergam como dependentes químicos e não procuram os serviços de saúde. Por isso, estamos investindo em postos de informação em festivais, clubes e bares”.
Assim como no Brasil, o crack também é comum e tratado por meio da redução de danos.
“A lei dá a opção de escolha do usuário seguir para tratamento ao invés da cadeia. Alguns usuários fazem essa escolha, mas agora com terapias de substituição, não é mais tão comum”, explica.
“Na minha visão, não faz sentido tentar tratar pessoas se isso não é do seu livre arbítrio”, opina.
Humanização do dependente
Transpor os modelos para o Brasil, contudo, esbarra em questões sociais e culturais. Goulão – que desde os anos 90 visita projetos no país – vê dificuldades em humanizar o usuário e de enxergá-lo como doente.
“No Brasil, as drogas são mais visíveis nas camadas mais pobres. A pobreza, por sua vez, já é criminalizada. Isso incentiva o discurso de que o dependente é responsável e merece ser punido”, analisa.
Outro ponto destacado é a necessidade de normas de conduta para todas as comunidades terapêuticas, incluindo contarem com um número mínimo de profissionais de saúde capacitados.
“Caso contrário, correm o risco de se tornarem apenas fábricas de ideologia religiosa”, alerta.