Desemprego tecnológico é quando a incorporação maciça de novas tecnologias na sociedade substitui postos de trabalho. Esse debate se intensificou com a chegada de inteligências artificiais (IA) com melhor capacidade de analisar dados, criar modelos combinatórios, tomar decisões e interagir. Mas o quanto de desemprego tecnológico elas realmente podem provocar?
Doutor em ciência política pela Universidade de São Paulo (USP), Thiago de Oliveira Meireles explica que a Humanidade já vivenciou diversas vezes a experiência de novas tecnologias extinguirem profissões, transformarem outras e criarem novas. “Como muitas dessas IA não estão completamente desenvolvidas e disponíveis, é difícil fazer previsões. Porém, há diferença desse momento histórico em comparação aos anteriores”, explica.
Meireles contextualiza que, na chamada robotização do trabalho, o computador assumiu atividades de repetição e o trabalhador se deslocou para outros postos, além de haver profissionais menos qualificados sendo menos remunerados.“No caso da IA, a novidade é que ela lida com habilidades cognitivas. Isso pode atingir trabalhadores mais escolarizados e melhor remunerados, exigindo deles novas habilidades”, analisa.
“As últimas revoluções industriais atingiram nichos da sociedade e essa tem potencial de abranger todos, incluindo trabalhadores intelectuais”, completa o docente de ciências da computação na Universidade Federal de Goiás Anderson Soares.
Desigualdade de renda
Em sua tese de doutorado, Meireles analisou os impactos da IA no mercado de trabalho brasileiro em uma janela de 15 anos. “A expectativa é que as novas IA causem mais desigualdade de renda entre trabalhadores — com poucas pessoas ganhando mais — do que um desemprego massivo”, analisa Meireles.“O motivo é que o custo dessas tecnologias é alto e as discussões sobre desemprego [nesse contexto] se concentram em países com mercado de trabalho formalizado e mais escolarizado, o oposto do Brasil”, completa.
Para ele, isso apenas ocorrerá quando a tecnologia for mais barata do que um trabalhador e exercer uma função tão satisfatória quanto um humano. “Fazendo uma alegoria, dificilmente a pessoa que mexe na prensa é substituída antes da própria prensa. Porém, ocupações de decisão devem desaparecer”, acrescenta o coordenador do Centro de Estudos Sociedade e Tecnologia da Universidade de São Paulo (EP-USP) Edison Spina.
Para os dois especialistas, ocupações que exigem tomada de decisão e que avaliam o que os outros estão fazendo já são atingidas pelo aprendizado de máquina (machine learning), tipo de inteligência artificial que “aprende” com dados. Ela analisa os dados disponíveis e cria um modelo analítico para a tomada de decisões.“Ele classifica os dados e retira a necessidade de um controle prévio. Por exemplo, no campo da internet das coisas, já é possível que um algoritmo identifique quando a máquina precisa de um reparo e interrompa as atividades delas”, exemplifica Meireles.
Segundo ele, porém, a dificuldade de prever com clareza o impacto das IA no mercado de trabalho é saber, dentre todas as que estão sendo desenvolvidas pelas empresas, quais vingarão.“Seria necessário descobrir quais habilidades elas substituirão e, a partir delas, dar esse salto para entender quais trabalhadores seriam afetados. Fazer essa análise hoje é difícil”, justifica.
Para ele, porém, é possível imaginar postos de trabalho intelectual sendo transformados e exigindo novas habilidades, algo que já acontece atualmente. “O que se demandava de um cientista político há dez anos era algo mais analítico, de buscar evidências qualitativas em documentos. Hoje, são necessárias habilidades mais estatísticas, incluindo lidar com programas que moldem esses dados. Ou seja, a ocupação continua existindo, mas mudou gradativamente”, opina Meireles.
Soares prevê descompasso entre o que o mercado necessitará em termos de profissionais e a qualificação da mão de obra que estará disponível. “Mesmo no presente, o analfabetismo digital é uma realidade e atinge a pirâmide do mercado de trabalho”, avalia.
“A precarização do trabalho deve continuar mais associada à plataformização das profissões, que são os aplicativos que intermediam o trabalho de prestadores de serviço com os clientes, o que acontece nos apps de mobilidade urbana e entrega de comida”, completa Meireles.
Reprodução de preconceitos
Outro motivo para os pesquisadores pensarem que as inteligências artificiais não devem provocar desemprego em massa a curto prazo são os pontos fracos dessas tecnologias, ainda dependentes de intervenção humana.“Esses sistemas não pensam por si só e não são independentes, mas alimentados por dados. Ou seja, o que as pessoas imaginam da IA funcionando como um oráculo está longe de acontecer”, explica Meireles.
Uma das questões apontadas são os vieses, isto é, se os dados que alimentam a IA refletem preconceitos sociais – como racismo, homofobia e machismo — a tecnologia reproduzirá as mesmas discriminações, sem qualquer senso crítico.
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“Vieses e preconceitos diversificados existentes na sociedade e ficam embutidos nos dados. Em um exemplo anedótico, se um banco negou durante anos crédito para um perfil de mulher que é mãe solteira e negra, ainda que você não inclua gênero, raça e número de filhos no pedido, os algoritmos podem identificá-la indiretamente por outras informações – como CEP e sobrenome — e continuar negando o benefício”, ilustra.
Outro problema é que a maior parte dos profissionais que atuam na construção de algoritmos de IA são homens, brancos e cisgêneros, de modo que times pouco diversos tendem a não se atentar para esse tipo de problema. “Quem controla os algoritmos tem o poder de influenciar nas respostas dadas e pode haver diversos interesses, inclusive políticos”, alerta Spina.
Isso traz para o debate a necessidade de regularizar as plataformas e garantir que elas ajam eticamente por meio de políticas públicas. Porém, Meireles explica que o desafio está na velocidade com que as tecnologias evoluem, o que causa descompasso com o ritmo lento dos trâmites na Câmara dos Deputados, Senado e no Executivo.
“O mesmo vale para a necessidade de politicas publicas educacionais que qualifiquem profissionais e evitem o desemprego tecnológico. E se ele acontecer, muitos cientistas políticos defendem a necessidade de discutir uma renda básica universal para que os excluídos do mercado de trabalho consigam sobreviver”, aponta Meireles.
E o ChatGPT?
ChatGPT é uma IA de conversação desenvolvida pela OpenAI que simula um ser humano para responder dúvidas. Ele será incorporado ao buscador Bing e tem potencial de revolucionar o sistema de buscas na internet.“É um modelo de aprendizagem de máquina que usa linguagem de texto e trabalha com grande volume de dados. Ele representou um avanço considerável ao apresentar textos coesos e gramaticalmente corretos”, explica.
No entanto, Meireles não acredita que o ChatGPT cause maiores revoluções no mercado de trabalho por ora. “Ele não é capaz de criar algo novo, mas reproduzir conhecimentos já existente. Por ser alimentado por uma base monstruosa de dados, pode reproduzir informações imprecisas que estão nesses textos”, explica.
Um erro comum é a tecnologia usar palavras que estão associadas ao tópico perguntado de forma equivocada. “Por exemplo, o ChatGPt afirma que o piloto de Fórmula 1 Ayrton Senna morreu no autódromo de Interlagos, quando ele faleceu em acidente em Ímola, na Itália. Como Senna venceu diversas vezes em Interlagos, possivelmente seu nome está muito associado a essa palavra nos textos que a tecnologia usa como base”, exemplifica Meireles.
“Dessa forma, ainda que o ChatGPT não resolva completamente a criação de textos, ele pode ser incorporado em atividades de redação, por exemplo, na parte de revisão gramatical”, pondera Meireles. Para Spina, tecnologias como o ChatGPT podem mudar a forma como os diferentes trabalhadores buscam conhecimento na internet. “Não bastará mais perguntar, é preciso saber como perguntar. Muitos devem ficar excluídos por não saber fazer uma pergunta da forma certa”, finaliza.
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