Qualquer material, substância ou objeto descartado é considerado resíduo sólido. O Brasil não possuía uma legislação específica para esses materiais até 2010, momento em que contava apenas com uma Lei de Saneamento Básico e resoluções pontuais do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama).

“Estas eram criadas quando os problemas apareciam. Após um derramamento de óleo, por exemplo, lançava-se uma resolutiva para isso”, lembra a professora do Departamento de Saúde Ambiental, da Universidade de São Paulo (USP), Wanda M. R. Günther.

A situação mudou com a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), lei que demorou 19 anos para sair do papel.

“Ela trouxe avanços como a responsabilidade compartilhada entre produtores, consumidores e poder público; integração dos catadores e prazos para acabar com os lixões a céu aberto”, lista a professora do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Antonella Maiello.

A política formulou diretrizes a serem colocadas em prática e instrumentos como os Planos de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos (PGIRS), que deveriam ser produzidos em âmbito nacional, pelos estados e municípios. Cada um faria o diagnóstico dos resíduos em seu local e estipularia ações, metas e prazos de cumprimento das recomendações da PNRS. Também exigiu planos de gerenciamento de instituições privadas produtoras de grande quantidade de lixo, como hospitais, shoppings e indústrias.

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Municípios desconhecem sua realidade

Uma década depois, muitas exigências ficaram desatendidas, começando pelo próprio plano nacional. “A versão do plano de 2012 não foi aceita e o novo documento está em construção”, relembra Günther.

Em 2017, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) apontou que apenas 54,8% municípios elaboraram seus planos municipais. “Os de pequeno porte alegam não ter recursos ou competência técnica para fazer o diagnóstico, e há grandes cidades ainda na fase de estudo”, contextualiza Maiello.

“Sem saber os tipos de resíduos e a quantidade que gera, não há como traçar metas, como começar reciclando 2% do lixo e crescer gradualmente”, ilustra Günther.

Além disso, ter um plano não significa que ele esteja implantado ou tenha qualidade. “O município precisa do documento para ter acesso às verbas da União. Com isso, muitos fizeram planos genéricos, sem diagnóstico e que não atendem ao mínimo solicitado pela PNRS”, denuncia Günther. “Estes deveriam ser revisados a cada quatro anos, muitos estão defasados”.

Lixões ainda persistem

Lixões a céu aberto deveriam ser erradicados em 2014. Quatro anos depois, a Confederação Nacional de Municípios (CNM) apontou 2.978 ainda ativos. O Novo Marco Legal do Saneamento Básico (2020) estendeu o prazo para 2024.

“Aproximadamente 60% dos resíduos sólidos urbanos coletados vão para o aterro sanitário, que é o local adequado, com drenagem de chorume, queima controlada de gás carbônico e impermeabilidade, que protege os corpos hídricos”, esclarece Maiello.

“Contudo, estima-se que 17% dos resíduos ainda terminem nos lixões a céu aberto e 22% em aterros controlados. Estes não drenam chorume e não são impermeabilizados, podendo contaminar lençóis freáticos”, alerta.

Para Maiello, deixar os municípios sozinhos prejudica a meta. “É preciso cooperação efetiva e continuativa dos três níveis de governo para uma tarefa tão complexa como a gestão adequada dos resíduos sólidos. E como o problema é estrutural, não é possível enfrentá-lo apenas prorrogando o prazo de erradicação dos lixões”, assinala.

Günther critica a tipificação dos resíduos pela origem, apenas como domiciliar, saúde e industrial.

“Hoje, um domicílio também gera resíduos eletroeletrônicos, medicamentos vencidos ou em desuso, ou embalagens de produtos químicos e, agora, resíduos considerados como infectantes, caso de pessoas contaminadas pelo coronavírus”, justifica.

“Sem separação e destinos especiais, todos acabam nos aterros. O ideal seria pensar fluxos para cada, independente da origem”, sugere Günther.

Por fim, a descontinuidade dos projetos também prejudicou essa diretriz. “Quando troca prefeito e governador, muito se perde”, lembra Maiello.

Reciclagem é baixa

Os municípios são ainda responsáveis pela coleta dos recicláveis, encaminhadas para separação manual nas cooperativas de catadores.

“De 2% a 7% do lixo produzido, hoje, é reciclável no país, índice baixo e que indica falta de prioridade e infraestrutura”, analisa Günther. “Enquanto papel, alumínio e plásticos são bem aceitos, artigos tecnológicos e outros ainda não são reciclados.”

Diversos problemas impedem o avanço da meta. “Com pouca coleta seletiva e de baixa qualidade, a taxa de reciclagem será igualmente pequena”, analisa Maiello. “Como exigir reciclagem se não há perto mercado próximo à cidade para comprar esses produtos”, diz Günther.

Ela questiona se o modelo de cooperativas adotado e a separação manual são os melhores para valorizar os resíduos.

“O que vemos é uma taxa baixa de reciclagem com catadores mal remunerados, desprotegidos e em trabalho insalubre”, reflete.

Já entre os cidadãos, como produtores individuais de resíduos urbanos, Maiello ressalta que, em geral, em todo o mundo e não apenas no Brasil, “lixo” e “esgoto” são percebidos como rejeitos da mesma forma. Algo nojento, com o qual ninguém quer lidar diretamente “É como se, quando colocado para fora de casa, deixasse de ser problema meu.”

Empresas sem ação

Após o PNRS, as empresas se tornaram responsáveis pelos resíduos especiais dos seus produtos, a chamada “logística reversa”. Setores como o de embalagens de agrotóxicos e pneus já possuíam projetos bem sucedidos, anteriores à lei. “Fora esses, houve melhoria em outros setores, mas aquém do que deveria”, decreta Günther.

Um dos motivos foi o não entendimento entre o governo e os setores produtivos, devido à complexidade e discussões que ainda se arrastam por esses 10 anos.

“Na prática, há pressão sobre o gestor público e o consumidor para contribuírem com a devolução e coleta dos resíduos. O consumidor muitas vezes quer devolver corretamente, mas não há locais disponíveis e adequados”, resume.

Futuro exige fortalecimento

O novo Marco do Saneamento (2020) trouxe mudanças que afetaram a gestão de resíduos, como a obrigatoriedade de as empresas públicas passarem por licitações, concorrendo com privadas. Para Maiello, a lógica do lucro em serviços essenciais como todos os do saneamento básico, é totalmente inadequada.

“Ganha a licitação o preço menor, mesmo que oferte um serviço de baixa qualidade para poder competir. Mas quem paga por isso são os cidadãos.”

“O novo marco também enfraqueceu e desincentivou a parceria entre municípios para resolver problemas comuns, o chamado consórcio. Como compartilhar um mesmo aterro e o seu gerenciamento, ou o próprio serviço de coleta”, analisa ela.

As docentes, porém, são unanimes em considerar a PNRS ainda progressista. Como a maioria das leis, ela não tem um prazo de validade.

“Não precisamos de outra lei, mas complementar o que não deu certo e fortalecê-la. Seus efeitos dependem mais da operacionalização dos múltiplos atores envolvidos no processo de gestão de resíduos e, ainda mais, deles trabalharem juntos”, finaliza Maiello.

Crédito da imagem: Joa_Souza – iStock

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