“Sobre o que vocês querem falar?”. Com essa pergunta, a professora de artes cênicas Caroline da Silva Barbosa buscava mapear os interesses dos seus alunos na Escola Municipal Dalva de Oliveira, no Rio de Janeiro (RJ). “Trago essa questão porque vejo o teatro como lugar para falar coisas que nem sempre é possível expressar na realidade cotidiana”, explica. No caso dos estudantes, ela conta que as respostas frequentemente passam por temas como homofobia, abuso, assédio e racismo. Assim, foi de uma demanda dos alunos que surgiu a ideia de usar o teatro como espaço para debater questões raciais. O projeto, organizado por Barbosa em 2019, teve que fazer uma pausa na pandemia, mas gera reflexões para professores e alunos e nossas perspectivas.

Essa necessidade dos alunos já havia sido sentida por outros professores, culminando na criação da primeira semana da consciência negra da escola, em 2018. “Sentíamos uma necessidade de nos colocarmos como professores negros, não-brancos e brancos juntos em uma luta antirracista”, observa Barbosa. Naquela ocasião, o evento contou com a apresentação de um coletivo de teatro negro, que despertou o interesse dos estudantes. “O grupo perguntou se alguém na plateia conhecia o Abdias do Nascimento, criador do Teatro Experimental do Negro, e não houve retorno. Nesse momento, percebi que era um assunto que deveria ser abordado com os alunos”, relembra.

Alunos se arrumam no camarim para encenação de “Orfeu Negro” (crédito: divulgação)

No ano seguinte, ela convidou o professor de história da escola, Gilvan Irineu de Oliveira, para um trabalho em conjunto com o nono ano do ensino fundamental, que estudava a África. Como ela própria não teve contato com o Teatro Experimental do Negro na faculdade, foi necessário estudar e buscar referências. “Eu não vivo o racismo na pele, logo, precisava de narrativas e contextos históricos com o qual os alunos se identificassem. Nesse sentido, a vivência do professor de história foi importante também, pois era a mesma dos alunos”, completa.

Sequência didática

Em um primeiro momento, estudantes e professora discutiram reportagens de jornal sobre relações raciais, complementadas por relatos de racismo sofrido pelos jovens na escola, família e na interação com a cidade – como na praia e no shopping. “Na sequencia, buscamos referências positivas, porque exaltar o corpo e a cultura negra é igualmente importante”, defende.

“Mais do que trazer situações em que os estudantes se sintam diminuídos, eram necessárias referências que lembrassem o quão grande eles realmente são”, enfatiza. Além de Abdias do Nascimento e seu teatro experimental, a turma pôde conhecer a trajetória da grande dama do teatro e da televisão Ruth de Souza. Por fim, assistiram a filmes com a temática da negritude, mas foi Orfeu Negro (1999) – texto de Vinicius de Moraes sobre o mito grego – que gerou uma maior identificação. “É um texto que fala de amor tendo a música como base. É como se a arte fosse a ‘arma’ de Orfeu”, conta a professora.

Antes de começar as improvisações, Barbosa retirou as carteiras de uma sala, limpou o chão e fez um acordo de todos entrarem sempre descalços naquele espaço. “Eles escolheram as cenas que mais chamaram a atenção e, sem decorar textos, começaram a improvisar com suas próprias palavras”, conta ela, que ia gravando as experimentações.
Os próprios alunos foram se dividindo nos personagens, mas de modo que todos tivessem o mesmo espaço. “Aqueles que não se sentiam à vontade em cena, ajudaram na dramaturgia, na produção, sonoplastia e figurino”, ressalta a professora. Com as falas e improvisações dos alunos, ela fez um roteiro e construiu uma dramaturgia, que foi usada como base para a criação da peça. Em paralelo, Oliveira sugeriu uma pesquisa sobre o funk dos anos 90, manifestação da cultura negra e periférica que foi incorporada na trilha sonora das cenas.

Apoio emocional

Como os temas abordados no espaço cênico afetam a realidade dos alunos, Barbosa sentiu a necessidade de oferecer apoio emocional. Ela própria buscou ajuda psicológica para poder acolher os alunos da melhor forma possível. “O ideal é que tanto professores quanto estudantes tenham um suporte para todas as demandas que surgem na escola, sendo as relações raciais uma delas”, reforça.

O trabalho próximo aos alunos também a fez observar necessidades da turma que, no dia a dia, poderiam passar despercebidas. Uma estudante, que estava engajada em seu papel, confidenciou a um colega que desistiria da peça por estar com o dente quebrado e com vergonha de se mostrar no palco. “Entendi porque ela não ria e não falava tanto. Chamei-a para conversar e perguntei se, caso conseguíssemos arrumar a questão do dente, ela continuaria na peça. A resposta foi afirmativa”, diz. Os professores conseguiram o tratamento. “Foi gratificante vê-la atuando e sorrindo em cena”, confessa Barbosa.

Ao final, as apresentações foram bem recebidas pela comunidade escolar e a professora foi uma das ganhadoras do 21º Prêmio Arte na Escola, que visa a valorizar iniciativas do ensino das artes em escolas públicas do país. “Penso que o projeto influenciou os alunos a acreditarem em si e a se verem longe de um lugar de inferioridade. Tanto que muitos conseguiram passar em concursos para cursar o ensino médio em institutos federais e outras escolas públicas de referência, o que é uma conquista”, comemora.

Veja mais:

Dossiê Cultura Afro – O teatro experimental do Negro: Abdias Nascimento

Movimento Arte na Escola defende obrigatoriedade da disciplina e novo currículo no ensino médio

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