No ano do centenário de Paulo Freire, seu pensamento está presente na escola pública? Para a doutora em educação e professora da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) Dulcinéia de Fátima Ferreira, a resposta é negativa. “O ambiente escolar está longe de ter a concepção freiriana como projeto educativo. Em geral, porque as redes públicas são gerenciadas por municípios e estados com diferentes políticas e concepções de trabalho. Isso interfere nas propostas pedagógicas das escolas”, avalia ela, que admite a presença de educadores que trabalham com o autor: “Infelizmente, porém, são minoria”.
A mesma opinião é compartilhada pelo autor e pesquisador do pensamento freiriano José Eustáquio Romão. “Ao contrário do que afirmam críticos que responsabilizam Freire pelas mazelas da educação básica brasileira, a realidade é que estas não foram superadas justamente porque ele não foi aplicado. Nas poucas tentativas, ele foi exilado durante a ditadura militar e, agora, sofre ataques declarados do atual Ministério da Educação”, analisa.
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Ausência na formação
Outro fator que explicaria a baixa permeabilidade do pensamento freiriano nas escolas públicas é sua ausência nos cursos de pedagogia e licenciaturas.“Embora algumas instituições digam que trabalham uma pedagogia libertária, crítica e emancipadora, as obras do autor não estão presentes nos cursos, ficando a critério do departamento ou de docentes que se aliam com essa perspectiva”, descreve Ferreira.
Uma pesquisa de 2020, orientada pela docente da Pós-Graduação em Educação em Ciências da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) Cristiane Muenchen, validou essa visão. A doutoranda Vanessa Lago Morin e colaboradoras aplicaram um questionário sobre conhecimento freiriano para 15 alunas da pós-graduação. Em média, as entrevistadas tinham formação inicial em ciências biológicas com experiência profissional docente acima de seis anos, sem detalhar em quais redes.
“Oito disseram ter tido contato com o autor na graduação e sete somente na pós-graduação. Assim, compreende-se que a educação de Freire está presente apenas em alguns currículos de graduação”, conclui Muenchen. Para Romão, docentes universitários formadores de professores têm receio do autor. “Não é ódio ou rejeição pelo fato dele não ter tido um diploma de educador em vida. A teoria freiriana defende que se reflita criticamente sobre a prática educativa, mas muitos desses formadores nunca pisaram em uma sala de aula”, opina. “Deve-se enxergar a ciência que nasce no chão da escola, não em gabinete ou laboratório”.
Pistas na escola
A ausência do pensamento freiriano nas escolas públicas pode ser vista em diversas áreas, como aponta Ferreira. “O educador se forma sem autonomia, postura crítica e criatividade, o que influencia na prática dele e repercute na vida dos educandos”, ressalta.
A educação bancária, criticada por Freire, é ainda uma realidade. Nela, professores enxergam o aluno com um pote vazio, no qual irão “depositar” conhecimento. Isso estimula práticas de cópia e memorização. “Há pouco espaço para o aluno criar, pesquisar, confiar no seu potencial, na história da sua família, povo e cultura”, reforça Ferreira.
A docente ainda cita a falta de formação continuada como um problema para o pensamento do autor não prosperar nas redes. “A formação inicial é somente a base para começar a trabalhar na educação. Nem sempre o graduando está maduro e imerso no processo formativo.”, explica. “A formação acontece na práxis educativa, em que o professor vive sua ação e reflete sobre ela, em um encontro entre teoria e prática. Isso não se faz sozinho: precisa de espaço e tempo na rotina, troca entre pares e rede de apoio”.
Para Muenchen, uma escola pública adaptada ao pensamento freiriano valorizaria a realidade dos alunos em sala de aula. “Paulo Freire não se limitou a criticar a educação bancária, mas indicou caminhos para desenvolver um currículo que considerasse o mundo dos alunos. Propôs uma nova relação entre o currículo e a comunidade escolar”, ressalta.
Aceitação mundial
Para Muenchen, a aplicação de uma perspectiva educacional de Paulo Freire nas redes públicas exigiria a colaboração de docentes, alunos e entes governamentais. “Precisa de estudo da realidade; temas do mundo do estudante usados para abordar conceitos científicos; formação permanente dos educadores e trabalho coletivo na escola”, lista.
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Combater a educação bancária também precisa estar presente nas políticas públicas do Ministério da Educação, como aponta Romão. “Para os críticos no governo, o perigo é ler Paulo Freire, pois é um texto encharcado de afetividade e que mexe com as estruturas cognitivas, afetivas e políticas da pessoa”, opina.
Romão, que foi amigo do pensador e atuou como diretor de relações internacionais do Instituto Paulo Freire, lembra que há receptividade na educação básica quando o pensamento freiriano é introduzido. “Ele promove mudanças, como vi em projetos na Europa, Oriente Médio, América do Sul e em tantos outros locais do mundo”, observa.
Esta reportagem é parte do especial ‘Paulo Freire 100 anos’. Acesse todos os conteúdos!
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Atualizada em 02/09/2021, às 09h20