Em maio de 1968, uma greve estudantil iniciada nas escolas de ensino secundário e nas universidades mudaria a França e o mundo. Os jovens franceses lutavam contra a guerra na Argélia, contra o então presidente general Charles de Gaulle e buscavam mais representatividade na sociedade. O levante foi endossado por dez milhões de trabalhadores e intelectuais, provocando mudanças legislativas e comportamentais.

“O movimento tornou possível o questionamento da autoridade dentro da família, na sala de aula e nas relações afetivas”, lembra a doutora em história social e professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Andréa Doré.

Desde 2015, o Brasil também vive um momento de mobilização estudantil, com as ocupações contra a “reorganização escolar” no estado de São Paulo, em 2015, e, posteriormente, contra a PEC 241, medida que congelou o investimento do governo em educação, saúde e demais serviços públicos por 20 anos, e a Reforma do Ensino Médio. Seria possível, então, traçar paralelos entre os dois fenômenos? Para Doré, a resposta é afirmativa.

“Houve uma tomada da palavra. Tanto os estudantes franceses de 1968 quanto os brasileiros a tomaram para si e discutiram com outros grupos as críticas à sociedade em que vivem, sem intermediários ou elaboração de especialistas”, opina. Confira a entrevista completa.

Qual a importância histórica do Maio de 68?

Andréa Doré: Maio de 68 é interpretado de muitas formas. O movimento trouxe alterações objetivas no sistema de educação francês e nos direitos de trabalhadores, mas isso foi bastante pontual. Há outras facetas: mostrou a capacidade de crítica, de mobilização e de expressão das pessoas, principalmente, dos jovens, e produziu mudanças de comportamento que repercutem até hoje. Ele tornou possível, por exemplo, o questionamento da autoridade dentro da família, na sala de aula e nas relações afetivas. O lugar dos jovens na sociedade passou a ser discutido por seus próprios atores. No campo artístico, assistiu-se à eclosão do happening e da performance, que são formas de arte que combinam teatro e artes plásticas e contam com elementos de imprevisibilidade e participação do público. Nas ciências humanas, novos temas e novos métodos de pesquisa foram valorizados a partir do que se discutia nas ruas.

Após 50 anos, as problemáticas levantadas pelo Maio de 1968 foram superadas?

Doré: Nesse meio século, vários dos problemas que os atores de Maio de 68 viam na sociedade de consumo que criticavam foram agravados. Além das questões econômicas, destacaria a crise de representação que os manifestantes expressavam. Em nenhum âmbito – político, educacional ou econômico -, eles viam seus interesses representados. Por isso, um dos lemas do movimento era ter a palavra aberta para todos. Estamos longe de dizer que isso foi superado nesses 50 anos.

Qual foi o principal ensinamento deixado?

Doré: Foi um acontecimento muito amplo e que envolveu grupos diversos e com reivindicações diferentes, como intelectuais, estudantes e trabalhadores. Mas, visto de forma geral, Maio de 68 se insere num conjunto de acontecimentos que se realizaram por meio da negação e da recusa. Como dizem vários estudiosos deste momento histórico, como Henri Lefebvre e Alain Touraine, e que podemos também afirmar sobre outros movimentos de contestação, é pelo negativo que se introduz o positivo.

Podemos traçar paralelos entre Maio de 1968 e as mobilizações dos secundaristas brasileiros, que vêm ocorrendo desde 2015?

Doré: Sim. Todos esses acontecimentos, além de serem experiências singulares, continham também a ideia de negação, de rechaço e de protesto contra as situações sociais vividas até então. Além disso, lendo o que o historiador francês Michel de Certeau, como testemunha dos acontecimentos, escreveu sobre Maio de 68, e observando o que vivemos no Brasil, um paralelo importante é o que o autor chamou de “tomada de palavra”.

O que seria a experiência de “tomada da palavra”

Doré: Tanto os estudantes franceses quanto os estudantes no Brasil tomaram para si a palavra e discutiram com outros grupos as críticas à sociedade em que vivem, sem intermediários e sem a elaboração de especialistas. No Brasil, as mobilizações dos secundaristas forçaram uma suspensão do que se estava fazendo, motivaram o debate, criaram novas oportunidades de diálogo e de conflitos dentro das escolas. Também expuseram para a sociedade o descontentamento e os problemas vividos pela educação básica. Isso foi muito importante, mesmo que as reivindicações não tenham sido atendidas. Por exemplo, depois que o movimento de Maio de 68 foi desfeito, o partido de Charles de Gaulle saiu vencedor das eleições. Contudo, isso não esvaziou a força da experiência de que se fala até hoje.

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