Casos de bullying e violência na escola costumam acender o debate dos melhores caminhos para mediar as relações, resolver conflitos e prevenir tragédias nesse ambiente. Segundo a líder do Grupo de Estudos em Educação Moral (Gepem) e professora do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Luciene Tognetta, um erro comum é achar que um único ator garantirá essa boa convivência.
“No passado, o diretor era colocado nessa figura de autoridade máxima. A mesma lógica pauta aqueles que pedem policiais e psicólogos na escola ou que atribuem a responsabilidade somente a figura do mediador. O que acontece é que, no dia a dia, a convivência perpassa o caminho de todos”, destaca ela, que defende projetos onde os próprios estudantes se engajem na resolução de conflitos.
Desde 2015, o Gepem aplica uma metodologia de grupos de ajuda formado por alunos em escolas públicas e particulares. Uma das instituições que conta com o projeto é a Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) João Alves dos Santos, de Campinas (SP), que no passado chegou a ter um incidente envolvendo dois jovens e uma arma de fogo.
No modelo, três estudantes são eleitos por sala para representar a turma. “Eles não são escolhidos porque são mais legais, populares ou inteligentes, mas por serem pessoas que os outros confiariam um segredo”, explica. Os escolhidos passam por uma formação de oito horas sobre como desenvolver uma escuta empática e uma linguagem assertiva, identificar situações de bullying e alunos que são excluídos ou estão com dificuldades de se enturmar e acolher diferentes demandas.
“É eficiente porque são eles que estão nos intervalos, nos banheiros e em outros locais que os adultos não têm acesso. Que sabem quem foi excluído de uma festa ou que está sofrendo alguma agressão nas redes sociais”, justifica a mestra em educação escolar e membro do Gepem de Campinas, Darlene Ferraz Knoener.
“Adolescentes querem estar em causas. É como se cooptássemos esse desejo para o bem. Os sistemas de apoio aproveitam esse momento”, explica Tognetta. “Além disso, aproveitamos o conhecimento deles sobre a situação que o outro aluno passa, sensibilidade que os mais velhos, por serem de outra geração, nem sempre vão possuir. Por isso o sistema é eficaz”, diz.
Os participantes ainda contam com professores tutores, que são formados pelo grupo. Em casos que possam envolver risco à vida, à saúde ou à segurança, os estudantes são orientados a acioná-los. “Eles conseguem detectar situações no início. Quando algo já está instaurado, são os adultos que precisam agir. Afinal, eles ainda são crianças”, completa Knoener.
Da automutilação ao bullying
Knoener compila diversos casos em que o sistema de ajuda mútua, entre pares, foi eficiente para prevenir situações de violência e dor em diferentes instituições de ensino. “Houve uma situação em que alunos descobriram que uma menina estava se cortando no intervalo. Outra, que descobriram frases que podiam configurar risco à vida no banheiro feminino. Pela letra, elas identificaram a autora e, sem que ela soubesse, conseguiram se aproximar. A aluna gostava de cinema, então elas usaram isso para fazer amizade”, relembra.
Bons exemplos também ocorreram na EMEF João Alves dos Santos, como relata o professor de história e tutor Heitor Guizzo. “Houve uma campanha após os estudantes identificarem frases que difamavam mulheres nas carteirinhas, o caso de um garoto com histórico de violência cuja incidência das agressões diminuiu e de uma menina, igualmente agressiva, que foi eleita como representante da turma. Os adultos ficaram apreensivos no começo com essa escolha, mas foi a melhor coisa que aconteceu. Com a formação, ela pôde trabalhar esse lado e se tornou um ótimo membro da equipe de ajuda”, revela.
“O método ajuda a estreitar a relação e o diálogo entre os alunos de uma forma que eles são os protagonistas”, complementa o orientador pedagógico da escola, José Luiz Pastre.
Hoje no ensino médio de outro colégio, Vitória Crispim de 15 anos, participou do grupo de ajuda nos últimos dois anos. “Foi importante perceber que apenas um olhar ou uma forma diferente de se aproximar podia fazer o outro estudante se sentir bem a ponto de topar se abrir”, relembra. “Para mim, o mais importante sempre foi o bem-estar. Ninguém precisa saber o que os monitores conversam com os alunos, ou quem precisa ser ajudado, é algo deles”, acrescenta.
Prevenção
Para o professor de história Guizzo, os conflitos em ambiente escolar sempre vão ocorrer. Os grupos de ajuda, contudo, servem como uma boa ferramenta no dia a dia. “Escola é um ambiente de convivência, onde pessoas de diferentes culturas se encontram”, relembra. Mesma opinião possui Tognetta. “A violência possui causas complexas. Tivemos casos duros nas instituições de ensino que são acompanhadas. Ainda assim, os grupos ajudam corpo docente e discente a lidar com a situação com mais qualidade”, diferencia ela.
Para os educadores, os grupos de apoio podem contribuir na prevenção de casos de violência na escola. “Há muitas variáveis, mas se partirmos do princípio de que os estudantes que cometeram o crime possuíam uma grande dor, o grupo poderia ajudar a identificar”, pontua Tognetta. “Em 2017, no caso do aluno que atirou em colegas em uma escola de Goiânia, os alunos sabiam que ele era chamado de ‘fedorento’ pelo demais. Chegaram a assistir um outro menino entregando um desodorante para ele. Um grupo de ajuda bem treinado saberia que isso configuraria bullying e poderia tentar intervir a tempo. É um tipo de situação possível”, explica Knoener.
O Gepem integra um grupo composto com outras universidades, ministério público e com as secretarias de educação do estado de São Paulo e do município de Suzano para uma intervenção pós-crime com professores e alunos da escola estadual Raul Brasil. “Estamos usando o ‘Protocolo de Intervenção Após Casos de Violência Dura em Contextos Escolares’, elaborado depois da situação ocorrida em Campinas e casos de suicídio em colégios particulares”, aponta.
O desenvolvimento de grupos de ajuda na Raul Brasil, contudo, necessitaria de mais tempo. “Questões sociemocionais não podem ser dadas em uma apostila, são vivenciadas no dia a dia. O sistema de apoio não é simples: exige formação dos alunos, dos tutores, entender o clima de cada escola, tempo para entender as diferentes formas de resolver conflitos. Caso contrário, os estudantes serão usados apenas como ‘inspetores’, o que não será eficiente”, finaliza.
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Crédito da imagem: KatarzynaBialasiewicz – iStock
Achei bem atual e bem embasado, irei sugerir na escola da filha.