Fome, longas distâncias e falta de recursos tecnológicos são alguns dos desafios enfrentados diariamente pelos alunos do ensino fundamental da Keriko Secondary School, na cidade de Nakuru, no Quênia. É de lá que vem Peter Tabichi, padre, professor de ciências e ganhador da edição de 2019 do Global Teacher Prize, prêmio organizado pela Varkey Foundation e considerado o ‘Nobel’ da educação. Segundo ele, foi necessário usar a criatividade para driblar a falta de computadores e a baixa conectividade da internet.
“Eu geralmente visito cyber cafés na cidade vizinha e deixo baixado o conteúdo digital online para usar quando estiver trabalhando offline ou lecionando em sala de aula. Também faço o download de vídeos usando o YouTube Downloader. Compartilho este conteúdo com as minhas turmas pelo meu celular”, explica o docente, que em 2017 conseguiu que dois estudantes vencessem um prêmio escolar nacional de ciências.
“Eles usaram plantas de sisal e Euphorbia, que foram coletadas localmente para gerar eletricidade de 12 volts”, conta.
Qual é a importância de estudar ciências para alunos de comunidades rurais?
Peter Tabichi: A África tem um tremendo potencial e acredito que, com a educação certa, garantiremos que nossas comunidades rurais produzam cientistas, engenheiros e empreendedores. As meninas vão, cada vez mais, desempenhando um papel importante nessa história. Mas isso exige uma grande mudança, uma vez que milhões delas – muitas no continente – não têm a oportunidade de ir à escola. Pela minha experiência, os estudantes realmente querem estudar quando entendem o que podem oferecer. Trabalhando na linha de frente, tenho visto a promessa que são os jovens africanos: sua curiosidade, talento, inteligência e crença. Vejo o talento bruto, a grande criatividade, o trabalho duro, a determinação de desafiar as probabilidades e a vontade de serem o melhor que podem.
Qual é o maior desafio de ensinar ciências nessas comunidades?
Tabichi: Minha escola e sua comunidade estão em uma área remota, no semi-árido, e experimentam seca e fome a cada três ou cinco anos. Cerca de 95% dos nossos alunos vêm de famílias muito pobres, sem acesso à água potável, e a insegurança alimentar é um desafio. Para muitos, fazerem o café da manhã ou jantar em casa é uma questão de sorte. Geralmente, contam com o mingau de café da manhã e uma mistura de feijão e milho cozido para o almoço, oferecidos pela administração da instituição de ensino. Os estudantes têm que caminhar de três a sete quilômetros em estradas que são intransitáveis durante a estação chuvosa para chegar. A conexão online é ruim: temos que comprar pacotes de dados e usar métodos de compartilhamento para acessar a internet. Há apenas um computador compartilhado entre os corpos administrativo e docente. Introduzir as tecnologias de informação e comunicação (TICs) nas minhas aulas em tal ambiente tem sido um dos maiores desafios. Além disso, um terço dos nossos alunos são órfãos ou criados por pais solteiros. Temos casos de indisciplina, abuso de drogas, gravidez na adolescência, abandono escolar, casamentos precoces e suicídio.
Quais são as suas orientações para docentes de comunidades carentes no Brasil que desejam ensinar ciência e tecnologia em contextos tão desafiadores?
Tabichi: Um bom caminho é tentar adotar práticas de educação que integrem tecnologia e métodos modernos de aprendizagem para enfrentar alguns dos desafios, como a falta de professores e recursos escassos e inadequados. Esses são problemas importantes na África, onde ensino, no Brasil e no mundo. Para ser um ótimo educador, você tem que ser criativo. Para superar a baixa conectividade com a internet em nossa escola, eu geralmente visito cyber cafés na cidade vizinha e deixo baixado o conteúdo digital online para usar quando estiver trabalhando offline ou lecionando em sala de aula. Também faço o download de vídeos usando o YouTube Downloader. Compartilho este conteúdo com os meus alunos pelo meu celular, o que contorna o fato de termos apenas um computador.
Um dos seus diferenciais foi o trabalho com feiras de ciências. Qual o resultado?
Tabichi: As feiras de ciências permitiram que os estudantes desenvolvessem sua criatividade como jovens cientistas, promovendo assim a educação STEM (ciências, tecnologia, engenharia e matemática). Por exemplo, dois alunos usaram plantas de sisal e Euphorbia, que foram coletadas localmente, para gerar eletricidade de 12 volts. O projeto ganhou um prêmio da Royal Society of Chemistry, de nível nacional. Em 2018, outro grupo de dois jovens projetou um dispositivo matemático simples que pode beneficiar pessoas com deficiências visuais e auditivas. Pessoas cegas e surdas podem facilmente medir o comprimento de um objeto usando esta ferramenta para uma precisão de 0,01 cm.
Qual o papel do professor nas comunidades carentes?
Tabichi: Professores verdadeiramente grandes têm um papel que se estende muito além da sala de aula e dos assuntos que ensinam. Temos uma explosão populacional de jovens e, portanto, o papel dos educadores como exemplos e mentores para eles, podendo equipá-los com as habilidades necessárias para realizarem seus sonhos e a grande promessa do continente africano. É uma grande oportunidade e uma nobre responsabilidade. O mesmo se aplica ao Brasil também. Todos os nossos filhos enfrentarão a transformação social da quarta revolução industrial.
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Crédito das imagens: The Varkey Foundation/Divulgação