Um ensino decolonial em artes visa desconstruir as perspectivas que privilegiam a cultura europeia e desvalorizam produções artísticas locais, negras, indígenas e de outras populações marginalizadas.

“Isso afeta a maneira como os alunos se identificam ou não com o que é ensinado’’, explica o professor e coordenador pedagógico do Colégio Pedro II – campus São Cristóvão, no Rio de Janeiro (RJ), André Pires.

Doutor em Artes e professor do Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG-Campus Santa Luzia), Tales Bedeschi Faria explica que a própria forma como o conhecimento é construído e transmitido no campo artístico também é eurocentrada, exigindo mudanças de perspectiva de metodologia de ensino e pesquisa”.

“Se remontarmos à criação da Academia Imperial de Belas Artes (Aiba) em 1826, fundada pela ‘Missão Francesa’ e que inaugura o ensino artístico no Brasil, temos uma tradição secular de desqualificar saberes, ciências e artes dos povos indígenas, africanos e afrobrasileiros”, contextualiza.

“Toda a produção estética, poética ou cultural que não atendia aos parâmetros das artes eruditas europeias era excluída ou inferiorizada. Isso afeta a atribuição de valor de manifestações artísticas, determinando quais são as artes que valem mais e menos”, acrescenta.

Abrindo espaços

Mas como aplicar um ensino de artes decolonial? “Partindo de produções e artistas não eurocentrados, que critiquem, desfaçam ou problematizem os lugares de subalternidade instituídos a esses povos indígenas, negros etc.”, orienta o coordenador pedagógico de artes visuais do Colégio Pedro II – Campus Realengo Marcelino  Rodrigues.

“Priorize produções artísticas que desvelem imaginários racistas, misóginos, homofóbicos, transfóbicos e capacitistas para suscitar discussão no cotidiano escolar, fortalecendo autoestimas e representatividades diversas na escola”, acrescenta.

“Como benefícios, os estudantes conhecerão manifestações culturais não contempladas em livros didáticos, ampliando repertório estético e visão de mundo”, afirma Faria.

“Também permite aos alunos um encontro com sua própria identidade cultural e racial, fomentando autoestima e pertencimento”, acrescenta Pires.

Para isso, Faria defende abrir brechas no currículo para que ideias e processos artísticos de outros povos adentrem.

Um professor universitário aborígene australiano, Tyson Yunkaporta, me disse que o professor, ao invés de ensinar a cultura indígena, deveria ‘abrir espaço para a cultura indígena, sua própria cultura e as culturas dos estudantes’”, compartilha Faria.

“Esse processo pode ser iniciado com as seguintes perguntas: ‘como o povo indígena, ou quilombola, que eu estou estudando com meus estudantes, ensinam e aprendem as suas artes? Em qual local e em que circunstâncias essa aprendizagem acontece? Esse agente do conhecimento é um professor, ou sua função se caracterizaria de outra forma?”, apresenta.

Perspectivas diferenciadas

Trazer a cultura de outros povos para a sala de aula exige lembrar que a produção artística deles é realizada de forma diferente da tradição eurocêntrica.

“Por exemplo, em culturas indígenas como os Xakriabá, aprende-se participando das atividades cotidianas (plantações, caças, rituais) e observando os mais velhos.  O centro do saber não é uma escola, mas o território, as matas e seus bichos”, diferencia Faria.

“Assim como não haveria um especialista chamado ‘artista’, pois todos podem dominar uma técnica, um fazer, uma ‘arte’ e colocar ela em circulação na aldeia”, ressalta.

Mesma opinião da antropóloga e artista-pesquisadora de música indígena Magda Pucci. “Por exemplo, não basta incluir músicas indígenas em aula, mas entender que a perspectiva indígena de fazer arte é diferente e varia de acordo com cada povo”.

Pucci e a musicista Berenice de Almeida são criadoras do site Cantos da Floresta, que disponibiliza gratuitamente propostas didáticas para professores ensinarem música indígena nas escolas.

A seguir, confira seis orientações que ajudam o professor de artes da educação básica a promover um ensino decolonial.

1) Apresente artistas indígenas contemporâneos

Faria recomenda apresentar tanto artistas indígenas que articulam questões contemporâneas às tradições de seus povos quanto mestres de artes indígenas tradicionais, cujos saberes são transmitidos de geração para geração e que circulam nas aldeias, não em museus.

No caso de artistas indígenas contemporâneos, Faria indica:

  • as obras de Jaider Esbell, na exposição Moquém Surarî;
  • as pinturas, instalações e textos de Arissana Pataxó, com destaque para a escultura Mikay (2009);
  • as colagens e performances de Denilson Baniwa;
  • a cerâmica tradicional, textos e obras de Nei Xakriabá e Ivanir Xakriabá;
  • discutir a retomada do manto Tupinambá;
  • obras, performances e vídeos de Glicéria Tupinambá e
  • a pesquisa de Gustavo Caboco.

2) Estimule a apreciação musical da música indígena

Entre as propostas didáticas do site Cantos da Floresta, Pucci indica atividades de escuta que aproximem o estudante não indígena da diversidade sonora dos povos originários. Na página do projeto, é possível encontrar 17 opções de músicas, incluindo as de povos como Krenak e Guarani.

Segundo Pucci, além da percepção dos elementos musicais como timbre, melodia, ritmo e forma, a escuta desencadeia sensações, imagens e conhecimentos prévios que o professor pode aproveitar em processos interdisciplinares.

3) Contextualize a música indígena

Após a apreciação musical, Pucci recomenda atividades que contextualizem questões sociais, geográficas e históricas de cada povo. “Toda música tem elementos relacionados à mitologia daquele povo, que podem ser destacados com a turma”, descreve.

4) Cante músicas indígenas

Depois da escuta e da contextualização, Pucci indica como terceiro eixo das propostas didáticas de ensino de música indígena os alunos cantarem e tocarem obras de diferentes povos. Para isso, o site disponibiliza letras, áudios e partituras, com indicações de pronuncia.

“Cantar em outra língua e colocar esse ritmo no seu corpo são ótimos exercícios de alteridade, fazendo o aluno se deparar com fonemas e estruturas diferentes das que está acostumado”, indica.

5) Apresente artistas negros

Apresentar artistas visuais contemporâneos negros e pedir para os alunos fazerem releituras das obras ou da temática abordada por eles são alternativas para o ensino de artes decolonial.

No artigo Arte e diálogo decolonial na educação (2024), Rodrigues e Pires trabalham com o 9º ano do ensino fundamental obras de dois artistas negros brasileiros.

A primeira, “Pardo é Papel”, de Maxwell Alexandre, traz imagens de corpos negros sobre o papel pardo, retratando o cotidiano carioca. A segunda, a série “Aceita”, do artista  paulistano Moisés Patrício, mostra uma mão negra oferecendo objetos descartados, bilhetes e frases sobre assuntos que povoam o cotidiano de populações periféricas.

“’Pardo é Papel’ traz uma reflexão sobre nossa formação étnica, fazendo o aluno repensar o que é a cor parda e o seu apagamento na cultura brasileira. Além disso, é possível experimentar o papel pardo como suporte para decalques e representações do cotidiano dos alunos, a partir de fotografias produzidas por eles”, aponta Rodrigues.

Já “Aceita”, de Moisés Patrício, convida os alunos a lerem detalhes, símbolos e metáforas por meio da mão e de objetos. “Leva-os a pensar o que é ou não aceitável em ambientes de convívio”, acrescenta Rodrigues.

Ele ainda recomenda apresentar aos alunos artistas como Rosana Paulino, Sonia Gomes, Kika Carvalho, Ayrson Heraclito, Arjan Martins, Sidney Amaral, Jaime Lauriano, Priscila Resende, Dalton Paula, Josafá Neves, Antonio Obá, Emerson Rocha, Emanoel Araujo e Jorge dos Anjos.

“Eles criam um elo com a vivência dos estudantes, inspiram uma reflexão crítica sobre identidade e pertencimento”, sinaliza Pires.

6) Associe o conteúdo ao entorno antes de abordar os cânones

Para as aulas de artes do ensino fundamental, Rodrigues sugere começar as proposições a partir do entorno, dos artistas do bairro, caminhando para artistas brasileiros e, posteriormente, conectá-los a outras partes do mundo.

“Por exemplo, um viés decolonial para falar da temática retrato, comum nesta etapa de ensino, poderia ser apresentando um artista local, a fotopintura, muito comum no nordeste, ou os retratos do artista pernambucano Derlon Alves. Depois disso, o professor poderia falar do retrato mais famoso do mundo, a Monalisa”, finaliza Rodrigues.

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