Denúncias de corrupção e desvio de verba das merendas escolares não são raras na imprensa. Segundo especialistas, nove pontos fazem com que o monitoramento da compra dos alimentos das merendas e a qualidade desses produtos seja difícil no Brasil.

Antes de entendê-los, porém, é preciso compreender como funciona o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), a política pública que garante a alimentação aos 42 milhões de estudantes das redes públicas de 5.570 municípios.

Da verba pública ao prato

No PNAE, o governo federal, via Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE/MEC), repassa uma verba referente às matriculas de estudantes de cada rede e 200 dias letivos. Os Estados e municípios complementam esse montante com recursos próprios.

A compra dos alimentos é realizada por cada estado e município via licitações públicas, quando fornecedores concorrem e o contrato é assinado com quem oferecer o menor preço.

“No mínimo, 30% do valor do FNDE devem ser utilizados na aquisição de gêneros vindos da agricultura familiar. Nesse caso específico, a compra é feita não por licitação, mas por chamada pública direta, geralmente nos sites da prefeitura e estados”, explica o docente do Instituto de Saúde e Sociedade da  Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Daniel Henrique Bandoni.

Após as compras serem feitas, suas informações são jogadas em um site privado do FNDE, o Sigpc. Estas serão fiscalizadas pelo Conselho de Alimentação Escolar (CAE) do estado ou do município, que podem aprovar ou reprovar as contas.

“Para receber verba do PNAE, todos os estados e municípios devem possuir um CAE. Este é formado por representantes da sociedade civil, pais, professores e do governo, sendo todos voluntários”, explica a coordenadora do Observatório Brasileiro de Alimentação Escolar (ÓAÊ), Mariana Menezes Santarelli Roversi.

Além do CAE, fiscalizam as contas da merenda os Tribunais de Contas Estaduais ou Municipais.

“Quando as contas são reprovadas, o município para de receber a verba do PNAE até a situação ser averiguada. Período em que as escolas podem ficar sem a verba da merenda”, contextualiza Bandoni.

A seguir, elencamos os nove pontos que podem prejudicar o monitoramento da merenda em escolas públicas.

1. Falta de transparência nos recursos próprios de municípios e estados

“Os estados e municípios seguem regras próprias sobre o quanto colocar de recursos orçamentários próprios. Cada lugar tem uma maneira de demonstrar essa compra, o que prejudica a transparência”, analisa Roversi.

Segundo o presidente do Conselho Estadual de Alimentação Escolar de São Paulo, Marcelo Colonato, muitos conselheiros não entendem que fiscalizar o programa não é checar apenas a verba federal, mas também os recursos próprios.

“Às vezes, o poder executivo se aproveita disso para dizer ‘sua fiscalização para aqui’. Mas no prato do aluno, os alimentos chegam misturados: o arroz vem de recurso do FNDE e, o feijão, do município. Não tem separação.”

2. Os preços dos alimentos variam

“Não há uma tabela de preço, pois um alimento que custa um valor no litoral terá outro até chegar na outra ponta do estado. Isso prejudica os conselheiros na fiscalização”, diz Bandoni.

De acordo com o pesquisador, essa dificuldade pode atrapalhar na identificação de compras superfaturadas. “Em municípios pequenos, os valores a serem fiscalizados são menores. Mas nos grandes os montantes são enormes”.

3. Terceirizações dificultam

Alguns estados e municípios repassam o processo de compra, preparo e distribuição dos alimentos das merendas a empresas terceirizadas, as Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscips).

“Existem experiencias boas e ruins dessas parcerias ao redor do Brasil. Porém, sempre haverá a necessidade de uma empresa ter lucro em cima da verba destinada pela prefeitura. Quando o poder público é responsável, tudo será gasto na merenda”, compara Bandoni.

“E não há milagre: se a prefeitura gastava R$ 20 com a merenda, e a Oscip oferece um contrato de R$ 10, a qualidade será prejudicada”, pondera.

Para Roversi, monitorar a merenda é mais difícil quando há terceirização. “Há descumprimento da porcentagem da agricultura familiar e costuma ser nessas licitações que trocas de favores ocorrem.”

“Para completar, quando são as merendeiras da própria escola que preparam alimentos, há uma relação afetiva e de maior conhecimento sobre o que os alunos comem em comparação a uma empresa que apenas entrega a marmita”, acrescenta.

4. Descentralização das compras

Há casos em que o estado passa a responsabilidade da alimentação das escolas estaduais para as prefeituras dos municípios onde essas estão localizadas.

“Nessa situação, o CAE estadual tem poder de fiscalização do município, algo que muitos conselheiros desconhecem”, lembra Colonato.

Municípios também podem permitir que cada escola compre diretamente os seus alimentos. “Se por um lado há maior autonomia da comunidade escolar, por outro, a monitoração do cardápio será mais difícil”, afirma Roversi.

5. Necessidade de mais tecnologias para transparência

Qualquer compra que prefeituras e estados realizam é disponibilizada no Portal da Transparência. “Mas não estão organizadas e detalhadas. Uma briga dos CAE é ter os cardápios disponibilizados nos sites do poder público”, pontua Colonato.

Outro problema é que o site do FNDE que os estados e municípios alimentam com as informações das compras (Sigpc) é fechado.

“Quando as compras são fechadas, ele se torna Sigcom, e presidente e conselheiros podem acessar os recibos mediante senha. O ideal é que fosse aberto a toda população”, defende Colonato.

“Tais dados são desatualizados e demoram a ser lançados. Além disso, muitas informações do FNDE desapareceram”, denuncia Roversi.

6. Estados e prefeituras não apoiam o CAE

A Lei do PNAE estipula que estados e municípios ofereçam o suporte para o funcionamento do CAE, como sala para reunião, transporte para os conselheiros se deslocarem às escolas, recursos humanos e tecnológicos.

“Muitos descumprem, e os conselheiros dependem de recursos próprios, que nem sempre têm, lembrando que é um trabalho voluntário. Inclusive, tal falta de apoio é motivo para o CAE rejeitar as contas públicas da cidade”, enfatiza Colonato.

Sem verba, os CAE não possuem sites com informações e contatos atualizados. “Simulamos uma tentativa de localizar alguns CAEs por telefone e não conseguimos. Dificuldade que muitos pais que queiram denunciar problemas na merenda podem encontrar”, compara Roversi. A experiência foi relatada em artigo no Anuário da ÓAÊ.

7. Poder executivo tenta interferir no CAE

“Em conselhos pelo Brasil, o poder executivo indica pessoas ligadas a ele para as vagas da sociedade civil”, denuncia Colonato.

“Em outros, o CAE é mera formalidade. Os conselheiros estão lá para assinar as compras, que é exigência do FNDE”, diz Roversi. “Apesar de que há também a o oposto: CAEs muito atuantes em fiscalizar e denunciar”, acrescenta.

8. Distância geográfica

“Geralmente, o CAE estadual fica na capital, e os conselheiros precisam visitar as escolas em diversas localidades do estado. A distância geográfica torna inviável”, lembra Bandoni. “Apenas quatro representantes da sociedade civil não darão conta de monitorar o interior de um estado”, acrescenta Roversi.

Em visitas longas, os conselheiros têm direito a uma diária. “Em São Paulo, precisamos pagar do nosso bolso para o Estado reembolsar. Nem todos os conselheiros voluntários têm recursos próprios”, ressalta Colonato.

Contra a distância geográfica, o CAE do Estado de São Paulo passou a propor encontro de conselheiros em 15 cidades polos.

“Mesmos no CAE municipal, visitar todas as escolas mais de uma vez por ano é impossível”, lamenta o presidente.

9. Conselheiro necessita de formação

“Quando a pessoa se torna conselheira, ninguém a informa sobre leis e a capacita. Isso prejudica seu exercício e seu entendimento como representante de órgão de fiscalização”, aponta Colonato.

Contra o problema, algumas universidades públicas hospedam o Centro Colaborador em Alimentação e Nutrição Escolar (CECANE), que oferece cursos para formar conselheiros. “É uma formação contínua porque sempre haverá conselheiros chegando”, finaliza Bandoni.

Veja mais:

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