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O ano de 1964, em Moçambique, marca o início do movimento anticolonialista contra a opressão portuguesa. É este o contexto que está na origem do livro “Nós Matamos o Cão Tinhoso!”, do escritor moçambicano Luís Bernardo Honwana. A obra, que entrou para a lista da Fuvest 2024, reúne contos sobre a luta do povo moçambicano pela independência do país.

“Luís Bernardo Honwana fez parte de um movimento de libertação de Moçambique e, então, vai militar dentro desse esforço de libertação de Portugal, que enfim será conseguido nos anos de 1970. O livro dele é publicado em 1964, no fervor da batalha anticolonialista, pelo menos no início desse movimento que dez anos depois resultaria na independência de Moçambique”, relata o professor de literatura do Sistema Anglo de Ensino e mestre em teoria literária pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Fernando Marcílio. 

A obra é considerada um marco da literatura africana por conclamar o povo moçambicano a lutar pela liberdade e autonomia do país. Os contos de Honwana expressam a realidade vivida durante a colonização portuguesa, como forma de denúncia. 

“O livro tem uma dimensão simbólica muito importante e, embora seja composto de várias narrativas, essa linha simbólica é a mesma: é o chamamento para luta, convocação para luta de resistência contra a presença estrangeira”, diz Marcílio. 

No áudio, o professor traz possíveis indicações do que a Fuvest deve valorizar em seu vestibular em relação a “Nós Matamos o Cão Tinhoso!”. Uma das possibilidades é a relação entre a narrativa dos contos de Honwana e de outros livros da lista, como o “Romanceiro da Inconfidência”, de Cecília Meireles. 

“Essencialmente, esse livro fala da luta pela liberdade e luta pela liberdade não tem data, não tem hora, não tem lugar. Ela sempre existe. A mesma coisa acontece com o “Romanceiro da Inconfidência”. Também é um livro que trata de um episódio específico, mas que trata, na verdade, da ambição e da luta pela liberdade”, explica. 

Neste episódio do Livro Aberto, Marcílio lê o trecho de um dos contos da obra que demonstra a valorização da cultura oral por meio de uma linguagem coloquial e repleta de regionalismo, como forma de resgate da identidade do povo moçambicano.  

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Transcrição do Áudio

Música: Música: “Viva, Viva a Frelimo” — Hino Nacional de Moçambique de 1975 a 2002 (Instrumental)

Fernando Marcílio:

O título começa com um ‘nós’, é uma confissão: “Nós Matamos o Cão Tinhoso!”. Quer dizer, então, que nós, moçambicanos, matamos Moçambique? Parece um pouco estranho. Mas, no fundo, quer dizer, a gente tem que levar em conta o ponto de exclamação, que também faz parte do título, e que transforma essa confissão numa manifestação de perplexidade.

É como se o próprio narrador, na condição de moçambicano; é como se o próprio livro, na condição de representação do povo moçambicano, confessasse uma morte. Mas como que esse povo poderia ser responsável pela morte do próprio país? Pela omissão, pela passividade. Eu acho que essa chave interpretativa me parece bem interessante. 

Meu nome é Fernando Marcílio, professor de literatura do Sistema Anglo de Ensino. Sou formado em história, com mestrado em teoria literária, sempre pela Unicamp. 

Vinheta: Livro Aberto — Livros e autores que fazem história

Música de Reynaldo Bessa, instrumental, fica de fundo

Marcelo Abud:

Lançado em 1964, “Nós Matamos o Cão Tinhoso!”, do escritor moçambicano Luís Bernardo Honwana, é uma das novidades da lista da Fuvest. O livro reúne contos que têm como pano de fundo a opressão colonial portuguesa e a luta pela independência do povo de Moçambique.

Fernando Marcílio:

Por volta dos anos 1960, várias colônias europeias na África se rebelaram contra seus dominadores. Isso aconteceu também em Moçambique contra Portugal e Luís Bernardo Honwana fez parte de um movimento de libertação de Moçambique e ele, então, vai militar dentro desse esforço de libertação de Portugal, que enfim será conseguido nos anos de 1970. O livro dele é publicado em 1964, no fervor da batalha anticolonialista, pelo menos no início desse movimento que dez anos depois resultaria na independência de Moçambique. 

Marcelo Abud:

De acordo com Marcílio, o livro não chegou a ser censurado pelas autoridades portuguesas que dominavam o país, mas a publicação não teve grande destaque. A segunda edição saiu só mais de uma década depois, quando Moçambique já era independente.

Fernando Marcílio:

Nós estamos falando de um autor que escreve num momento em que seu país luta contra a dominação estrangeira e de uma certa maneira o livro dele tenta — embora não pareça à primeira vista e, talvez, justamente porque não pareça à primeira vista que o livro tenha sido liberado, né, o livro não foi censurado — começa a estimular os moçambicanos que se rebelem contra a presença portuguesa no país. 

O leitor desse livro deve ter isso em mente. O livro tem uma dimensão simbólica muito importante e, embora ele seja composto de várias narrativas, essa linha simbólica é a mesma: é o chamamento pra luta, convocação pra luta de resistência contra a presença estrangeira. 

Som de página de livro sendo virada

Marcelo Abud:

No conto que dá título ao livro, Moçambique pode ser associada à imagem de um cão. Marcílio explica o motivo para essa comparação. 

Fernando Marcílio:

E por que Moçambique seria associado a um cão sarnento? Pela sua pobreza, pela sua miséria, pela sua condição de espaço marginalizado, pela maneira como ele é tratado exatamente pela metrópole, representada no conto pelos seus, enfim, membros. 

Então eu acho que o conto inicial do livro começa com a exposição de uma tragédia nacional. É um país que está sendo destruído, que está sendo ferido, e essa morte lenta está sendo assistida pelos seus próprios cidadãos. 

Marcelo Abud:

Além do conto homônimo, o livro possuí mais 7 narrativas curtas. Entre todas essas histórias há algo em comum.

Fernando Marcílio:

Você tem narradores em primeira pessoa jovens ou adolescentes, ou meninos, o que sugere uma trajetória de crescimento. No primeiro conto você tem um menino contando a perseguição a um cão. No segundo conto você tem um menino, não é nomeado, falando sobre a residência da família. E depois, você tem mais tarde, num conto chamado ‘A Velhota’, já um narrador adolescente. Você percebe uma linha de crescimento desse narrador. E, ao lado dele, você tem, num conto chamado ‘Dina’, um conto narrado em terceira pessoa, que tem como protagonista um homem já de idade, que transmite uma lição, que é a de que ‘não é a hora ainda de se rebelar’.

O último conto mostra um narrador que toma consciência disso e que se prepara para reagir a isso. E em seguida, no último conto realmente, que foi publicado em revista e incluído nessa edição, nós temos um trabalho de linguagem que mostra bem o esforço de reafirmação cultural. É como se fosse, portanto, a vitória dessa cultura, que resiste a todas as dominações, a todas as opressões. 

Som de página de livro sendo virada

Marcelo Abud:

Marcílio indica possíveis pontos que o vestibular da Fuvest pode destacar. 

Fernando Marcílio:

A Fuvest pode explorar uma relação entre as tramas e o contexto social, é bem importante o aluno fazer essa ligação. Da mesma forma, o sentido social de algumas personagens ou de algumas cenas, de algumas passagens. A postura do narrador, quase sempre em primeira pessoa, frente ao que é narrado. E o esforço do resgate identitário, o resgate da identidade nacional de Moçambique. 

Marcelo Abud:

O professor lê um trecho de um dos contos do livro. 

Fernando Marcílio:

A cena se passa em um bar e alguém chega com uma informação sobre o Vírgula Oito, que era o rapaz que tinha perdido as suas terras que tinham sido roubadas por grandes latifundiários.

Som de página de livro sendo virada

Fernando Marcílio:

– Virgula Oito ficou maluco patrão… Matou Zedequiel. Também queria matar eu, mas eu fugiu, correr muito mesmo!… A nós qereu agarrar ele e ele começou matar nós!… Estava falar com céu… A nós queria levar ele para fugir de vento nhinguitimo…

Caramba, como que é possível haver tipos como eu? Enquanto eu matava rolas e jogava ao sete-e-meio aconteciam uma data de coisas e eu nem me impressionava! Nada, ficava na mesma, fazia que não era comigo… Poça, aquilo tinha que mudar! 

Som de página de livro sendo virada

Fernando Marcílio:

É assim que se encerra o livro e eu acho isso genial. A fala do rapaz que vem informar sobre o Vírgula Oito já é repleta de regionalismo, de coloquialismo, de uma expressão da oralidade moçambicana. E a conclusão do narrador de que ‘puxa vida, tanta coisa acontece e eu fico aqui jogando baralho. E a sua frase final, que é a frase final do conto e do livro, se a gente excluir o conto que foi inserido depois, é esta: ‘Poça (poça quer dizer ‘poxa vida!’), aquilo tinha que mudar!’: é preciso mudar essa situação e acaba o livro. 

Na minha opinião, o narrador está transmitindo, transportando para o leitor a necessidade de mudar a realidade moçambicana. 

Som de página sendo virada

Marcelo Abud:

Todos os contos do livro têm esse nível simbólico de oposição do povo moçambicano aos portugueses no país. Isso aproxima o livro de Honwana de outras obras da lista da Fuvest que têm a perspectiva do colonizado, como em ‘Marília de Dirceu’, de Tomás Antônio Gonzaga, ou do colonizador, como em ‘Mensagem’, de Fernando Pessoa. Fernando Marcílio acredita que a Fuvest possa fazer alguma associação entre essas obras ou, ainda, com o ‘Romanceiro da Inconfidência’, de Cecília Meireles.  

Fernando Marcílio:

Essencialmente esse livro fala da luta pela liberdade e luta pela liberdade não tem data, não tem hora, não tem lugar. Ela sempre existe. A mesma coisa acontece com o ‘Romanceiro da Inconfidência’. Também é um livro que trata de um episódio específico, mas que trata, na verdade, da ambição e da luta pela liberdade.

São livros que ainda falam muito ao nosso contexto atual, porque a gente precisa sempre estar muito atento na preservação da liberdade. Mesmo quando aparentemente só o outro é atingido, toda pessoa que é ferida no seu direito, isso também nos diz respeito. 

Música de Reynaldo Bessa, instrumental, fica de fundo

Marcelo Abud:

Escrito há praticamente seis décadas, “Nós Matamos o Cão Tinhoso!” se mantém atual ao fazer críticas ao racismo, à violência contra a mulher, ao anseio por liberdade e à opressão imposta aos dominados.

Marcelo Abud para o Livro Aberto do Instituto Claro. 

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