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As páginas da literatura brasileira estão repletas de romances em prosa dedicados a acontecimentos históricos. Já versões poéticas são bem mais raras. Uma das mais importantes é “Romanceiro da Inconfidência”, de Cecília Meireles.

“O romance nesse livro não se refere à prosa, como costuma ser. O título da obra ‘Romanceiro’ tem a ver com as narrativas medievais como formas populares em verso de se contar uma história”, explica o professor de literatura no curso Anglo Vestibulares e nos colégios Anglo e Waldorf Micael de São Paulo (SP), Paulo Oliveira, ouvido neste podcast.

Publicado em 1953, o exemplar está ligado a um momento em que outras obras também retomavam certos aspectos “passadistas”, como o “Auto da Compadecida” e “Morte e Vida Severina (auto de Natal pernambucano)”.

Cecília Meireles em foto do fundo documental, do Correio da Manhã (crédito: Arquivo Nacional)

“Cecília Meireles se aproxima do gênero épico e de seu caráter narrativo, resgatando episódios ligados à Inconfidência Mineira, um movimento insurrecional que aconteceu em 1789”, diz Oliveira.

Entre os personagens históricos do período, a poeta dá ênfase especial a Tomás António Gonzaga e Tiradentes. A liberdade é o que está por trás da forma como os versos são construídos, que dialoga com a mensagem principal dos 95 poemas do livro.

Para o professor, esse é um aspecto que conversa com a atualidade. “O apreço pela liberdade é mesmo uma bandeira que deve inspirar a nossa necessidade dela, leia-se democracia, nos dias de hoje”, conclui.

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Transcrição do Áudio

Música: “Entrada – 1º Movimento da peça Museu da Inconfidência –Impressões de uma Visitação em 1966” (César Guerra-Peixe), com Orquestra Filarmônica de Südwestfalen, regida por Ricardo Rocha

Paulo Oliveira:
Cecília Meireles, como poeta, não quis fazer uma reconstituição histórica exata. Ela parte de uma pesquisa histórica muito aprofundada, muito séria, mas ela também lida com a liberdade que só a poesia pode dar no trato desses eventos.

Eu sou Paulo Oliveira, professor de literatura no curso Anglo Vestibulares, no Colégio Anglo São Paulo e, também, Waldorf Micael de São Paulo.

Vinheta: “Livro Aberto – obras e autores que fazem história”

Som de página de livro sendo virada

Música instrumental, de Reynaldo Bessa, de fundo

Marcelo Abud:
A literatura brasileira tem muitos romances em prosa sobre acontecimentos históricos. Já obras poéticas que se propõem a isso são raras. Uma das mais importantes é o “Romanceiro da Inconfidência”, de Cecília Meireles, publicado pela primeira vez em 1953.

Paulo Oliveira:
A década de 1950 foi um momento de grande florescimento de obras que, de certa maneira, visitavam estilos antigos. Além do “Romanceiro da Inconfidência”, a gente pode citar o “Auto da Compadecida”, do Ariano Suassuna, porque é um auto, uma forma teatral tipicamente medieval; “Morte e Vida Severina”, que tem como subtítulo “Auto de Natal Pernambucano”, do João Cabral de Melo Neto. E, sem forçar a barra, a gente pode lembrar ainda da publicação em 1956 do “Grande Sertão, Veredas”, que é um grande romance, mas que explora formas de narração muito antigas que remetem a novelas de cavalaria medievais.

Música: Tema de “Os Inconfidentes” (Chico Buarque), com Chico Buarque e MPB4

“Por aqui passava um homem / (E como o povo se ria!) / Liberdade ainda que tarde / Nos prometia”

Paulo Oliveira:
E o “Romanceiro da Inconfidência”, da Cecília Meireles, por si só, já é a retomada de procedimentos antigos, porque romance nesse livro não é uma narrativa em prosa, como costuma ser. O título da obra “romanceiro” tem a ver com uma forma poética medieval narrativa, que fala de acontecimentos, assim, interessantes e meio fantasmagóricos numa linguagem popular. Cecília Meireles resgata os romances medievais, então formas populares em verso de se contar uma história.

Som de página de livro sendo virada

Marcelo Abud:
O professor explica que a obra não se limita a um estilo literário específico.

Paulo Oliveira:
“Romanceiro da Inconfidência” pode ser considerada uma obra híbrida, no sentido em que mistura tanto um aspecto lírico, por uma voz em primeira pessoa que vai comentando os eventos que acontecem e são relatados nos romances e que, às vezes, manifesta sua indignação, mas o “Romanceiro da Inconfidência” tem também uma forte carga épica. O gênero épico é o gênero tradicionalmente que resgata por meio da poesia episódios importantes da história de um povo, basta a gente lembrar, por exemplo, “Os Lusíadas”, de Luiz Vaz de Camões.

Cecília Meireles se aproxima do gênero épico e de seu caráter narrativo, resgatando episódios ligados à Inconfidência Mineira, um movimento insurrecional que aconteceu em 1789.

Marcelo Abud:
No livro, os fatos históricos são recriados a partir de um profundo estudo feito por anos em autos do processo, cartas e outros documentos. Para Oliveira, essa dedicação da poeta dá ao “Romanceiro” um aspecto polifônico.

Paulo Oliveira:
Então a polifonia se manifesta quando Cecília Meireles dá voz a diversos personagens. Então nós temos a oportunidade de escutar a voz de Tiradentes, de Tomás António Gonzaga e, também, de vários populares, pessoas da rua que comentavam os acontecimentos da Inconfidência, faziam fofocas, uns indignavam-se contra as arbitrariedades da Coroa Portuguesa, outros tomavam o partido dos inconfidentes. Então nós temos no “Romanceiro” um jogo muito colorido, muito variado de vozes que vão apresentando vários pontos de vista de todo aquele movimento.

Música: “Exaltação a Tiradentes”, samba-enredo da escola Império Serrano, vencedor do Carnaval carioca de 1949 (Estanislau Silva / Mano Décio Da Viola / Arlindo Penteado), com Elis Regina

“Joaquim José da Silva Xavier / Era o nome de Tiradentes / Foi sacrificado pela nossa liberdade”

Som de página de livro sendo virada

Marcelo Abud:
O professor do Anglo avalia o que o vestibular da Fuvest pode abordar sobre o livro.

Paulo Oliveira:
É muito importante você conhecer os eventos relacionados a história propriamente dita da Inconfidência Mineira e, também, já caiu em questões anteriores um conhecimento da forma que os poemas podem ter. O que isso significa? É você saber com segurança que a Cecília Meireles utiliza principalmente versos metrificados; há uma preponderância de versos curtos, as chamadas redondilhas; então você saber identificar figuras de linguagem que podem estar presentes em um texto ou outro, sabe, metáforas, personificações, efeitos sonoros das palavras – aliterações, assonâncias. Tudo isso faz parte, digamos assim, do horizonte passível de ser explorado pelas questões da Fuvest.

Som de página de livro sendo virada

Marcelo Abud:
Paulo Oliveira lê um trecho do romance 24, ou “Da Bandeira da Inconfidência”, em que os inconfidentes estão reunidos em uma casa, escondidos, e discutem a bandeira que Minas Gerais teria depois do sucesso da Inconfidência.

Paulo Oliveira:
Atrás de portas fechadas,

à luz de velas acesas,

entre sigilo e espionagem,

acontece a Inconfidência.

E diz o Vigário ao Poeta:

“Escreva-me aquela letra

do versinho de Vergílio…

E dá-lhe o papel e a pena.

E diz o Poeta ao Vigário,

com dramática prudência:

“Tenha meus dedos cortados,

antes que tal verso escrevam…

Liberdade, ainda que tarde,

ouve-se em redor da mesa.

E a bandeira já está viva,

e sobe, na noite imensa.

E os seus tristes inventores

já são réus – pois se atrevem

a falar em Liberdade

(que ninguém sabe o que seja).

Som de página de livro sendo virada

Liberdade – essa palavra

que o sonho humano alimenta:

que não há ninguém que explique,

e ninguém que não entenda!

Som de página de livro sendo virada

Paulo Oliveira:
Os inconfidentes reuniam-se às escondidas para tramar o movimento de libertação das garras de Portugal e a palavra liberdade é uma das mais mencionadas no poema, com sua força e com seu caráter de sonho a ser realizado. Então, se a gente relacionar com os eventos fortes que a gente está vivenciando agora, tanto pelas questões raciais, a indignação contra as arbitrariedades raciais e também contra as ameaças à democracia brasileira, o apreço pela liberdade é mesmo uma bandeira que deve inspirar a nossa necessidade de liberdade, leia-se democracia, nos dias de hoje.

Música instrumental, de Reynaldo Bessa, de fundo

Marcelo Abud:
A liberdade está presente na forma como os versos são construídos e, também, como palavra de ordem dos 95 poemas escritos por Cecília Meireles no “Romanceiro da Inconfidência”.

Com apoio de produção de Daniel Grecco, Marcelo Abud para o Livro Aberto do Instituto Claro.

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