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Fantasia, com mistura de realidade, sonhos e imaginação. Esse foi o caminho que Mia Couto usou para tratar de um tema sensível a ele e a toda a sociedade moçambicana: a guerra. Em “Terra Sonâmbula”, seu romance de estreia, ele aborda a devastadora guerra civil que tomou conta do país africano entre 1976 e 1992. A obra agora figura na lista de livros para o exame da Fundação Universitária para o Vestibular (Fuvest) em 2022.

“Comecei a escrever esse livro como um chamamento, como uma certa visitação de colegas que foram mortos durante a guerra e compareciam nos meus sonhos, nos meus pesadelos, como se eu os tivesse que transformar em personagens para que se transformassem em alguém que resistia, que se tornava eterno”, diz o escritor.

O pano de fundo da obra é o conflito que eclodiu após a conquista da independência de Moçambique em relação ao domínio colonial português. Para retratar esse cenário, em que o próprio escritor foi atuante como membro ativo da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), Mia Couto utiliza a prosa poética, como revela em entrevista exclusiva nesta edição do podcast Livro Aberto, do Instituto Claro.

“Se a gente pensar que outro mundo é possível, então estamos a fazer poesia, no sentido de que estamos a construir alguma coisa que está para além desta linha do horizonte, que pensamos que é o fim e é simplesmente o princípio de uma outra coisa”, reflete.

Mia Couto deixou a Frelimo no final da década de 1980 para se dedicar à biologia e tornar-se um dos mais importantes autores de língua portuguesa. Entre as conquistas que acumula, o escritor, poeta e jornalista moçambicano foi contemplado com o Prêmio Camões em 2013.

Influência de Guimarães Rosa

Um dos elementos para seu êxito é a inventividade, além do uso de neologismos. Couto revela ter em Guimarães Rosa uma de suas influências mais importantes no estilo de escrita. “Rosa deu resposta a alguma coisa que eu andava procurando, que era uma linguagem que permitisse a entrada da oralidade. E Guimarães Rosa foi sobretudo uma luz verde, uma autorização”, observa.

Essa associação entre as narrativas de Mia Couto e Guimarães Rosa é uma das apostas para o vestibular. O professor de literatura do curso Anglo Vestibulares e do Sistema Anglo de Ensino André Koloszuk, também ouvido no podcast, lembra que a lista da Fuvest traz uma obra de Rosa. “Campo Geral também trabalha com elementos do mundo sobrenatural, sonhos, com aquilo que nós chamamos de regionalismo universalizante. Aqui, nessa obra do Mia Couto, nós temos uma grande influência desse escritor”, aponta Koloszuk.

Ouça também: “Campo Geral”, de Guimarães Rosa, reúne narrações sertanejas e temática universal

O livro se vale, ainda, de fábulas que fazem referência à cultura e ao folclore africanos, que convidam quem está se preparando para o vestibular a entrar em contato com histórias que fazem parte da formação da sociedade brasileira. “O Brasil tem tanto da África dentro e desconhece isso (…) Eu acho que é fundamental. O Brasil só se conhecerá bem se reconhecer como é que a África está presente no seu próprio fundamento”, afirma Mia Couto.

Ainda no áudio, o professor do Anglo traz pontos de atenção que podem ser outras apostas da Fuvest: questões sociais, violência sexual, consequências da guerra e machismo estão entre as temáticas universais presentes no livro.

No final, uma revelação. Mia Couto conta como foi a reação que teve ao ouvir pela primeira vez a música “Terra”, de Caetano Veloso: “Foi uma epifania. Era como se eu estivesse a ver pela primeira vez a Terra que se abria a meus olhos. Uma espécie de revelação que a canção trouxe”.

Veja também:

Plano de aula: “Terra Sonâmbula”

Transcrição do Áudio

Música: “Viva, Viva a FRELIMO” – Hino Nacional de Moçambique de 1975 a 2002 (Instrumental)
Mia Couto:
Comecei a escrever esse livro como um chamamento, como uma certa visitação de gente que tinham sido meus colegas – eu fui jornalista durante um tempo – e esses meus colegas foram mortos durante a guerra e eles compareciam nos meus sonhos, nos meus pesadelos, como se eu tivesse que os transformar em personagens para que eles se transformassem em alguém que resistia, que se tornava eterno.
Sou Mia Couto, sou moçambicano, filho de pais portugueses, escritor, sou biólogo.

Vinheta: “Livro Aberto – obras e autores que fazem história”

Música de Reynaldo Bessa, instrumental, de fundo

Marcelo Abud:
Após a conquista da independência, Moçambique mergulha em uma devastadora guerra civil. Esse é o pano de fundo para o relato poético e envolvente do romance de estreia de Mia Couto, publicado em 1992: Terra Sonâmbula.

Mia Couto:
Este livro fala sobre um período de uma guerra civil, que começou dois anos depois da independência de Moçambique. Em 77 começou esta guerra civil que durou 16 anos e fez um milhão de mortos. Portanto, foi uma coisa profundíssima, de uma violência extrema, não há família, não há gente em Moçambique que não tenha parentes e amigos que não tenham sido mortos nessa guerra.

Música: “Moçambique, nossa Terra Bendita” (Coral das F.P.L.M.)
E o sangue do povo triunfante
Vencerá o regime Salazar

Mia Couto:
A ideia que começou a surgir é que esta era uma guerra feita contra não apenas as pessoas, mas contra a ideia de uma nação. A construção de uma nação em cima de outras nações que são tão diversas, têm línguas diferentes, que têm culturas diferentes… é sempre um processo de violência assim. A literatura só pode sugerir que esses mundos que estão em conflito possam conversar.

Efeito de página sendo virada

Marcelo Abud:
Em “Terra Sonâmbula”, o velho Tuahir e o menino Muidinga representam uma narrativa entremeada de vozes de um país em busca de identidade nacional.

Mia Couto:
E logo a escolha dos principais personagens mostra que eu quis colocar esses universos em diálogo, há ali um menino e há ali um velho, portanto, as gerações diferentes que estão dialogando, às vezes em grande tensão, outras vezes em harmonia. Há ali o mundo da oralidade, que é o mundo do mais velho, e o mundo da escrita, que é o mundo do mais novo, que entram em conjunto. E quem faz a costura de tudo isso são cartas: há ali um terceiro elemento que mostra que a escrita como uma espécie de mensageira da modernidade pode costurar essas diferenças.

Marcelo Abud:
O professor de literatura do curso Anglo Vestibulares e do Sistema Anglo de Ensino, André Koloszuk, fala sobre o estilo de escrita de Mia Couto.

André Koloszuk:
“Terra Sonâmbula” trabalha com um gênero híbrido, porque tem aqui dentro desse livro: carta, diário, lendas, provérbios, ou seja, a gente está falando aqui de mistura de gêneros e de um estilo que vai além da própria realidade, né? Há aqueles que chamam de realismo mágico também…

Mia Couto:
O próprio título do livro sugere a ausência de fronteira entre o que está vivo, num território que está entre o sono, está entre a realidade. Há um personagem do livro que pergunta ‘o que é que faz andar a estrada?’. É o sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva, é para isso que servem os caminhos para nos fazerem parentes do futuro. Ora, se nós queremos ser parentes, não é, familiares do futuro, é preciso ter esse direito a sonhar. Isso a meu ver, é poesia! Ter a capacidade de não ficarmos paralisados e pensarmos que a realidade, tão após nós, que não pode haver outra coisa senão este mundo – se a gente pensar que outro mundo é possível – então estamos a fazer poesia no sentido de que estamos a construir alguma coisa que está para além desta linha do horizonte, que pensamos que é o fim, não é, e assim o pensamento do princípio de uma outra coisa.

André Koloszuk:
Então a gente pode classificar ele como um livro que trabalha com a prosa poética, quase que um poema. Há um outro texto na nossa lista da Fuvest que é o João Guimarães Rosa, que escreve “Campo Geral”. Também trabalha com elementos do mundo sobrenatural, os sonhos, com aquilo que nós chamamos de regionalismo ‘universalizante’. Aqui, nessa obra do Mia Couto, nós temos uma grande influência desse escritor na literatura.

Mia Couto:
Rosa deu resposta a alguma coisa que eu andava procurando, eu e os angolanos, que era uma linguagem que permitisse a entrada da oralidade. E Guimarães Rosa foi, sobretudo, uma luz verde, uma autorização: eu podia transgredir, eu podia ir buscar os limites da língua, romper essa fronteira entre o chamado português correto, que seria o português de Portugal, e deixar entrar aquilo que era nossa contribuição das diferentes culturas. Ainda por cima, em Moçambique, essas culturas são muito vivas (culturas da oralidade), porque há 25 línguas diferentes em Moçambique e não tem nada a ver com a raiz latina do português, são línguas da raiz bantu. É preciso remoldar o português. E o português aceita esse namoro, essa reconfiguração. E Guimarães fazia tudo isso com a benção da poesia, não é? Ele construiu outro sertão, que era o sertão da sua própria linguagem.

Música: Grupo Nhambuzim – Augusto (Edson Penha, Sarah Abreu e Joel Teixeira)
A cruz, a enxada, o louvor, a batalha acirrada brotando em seu coração
Augusto, chega de se esconder

Mia Couto:
A minha intenção aqui era realmente ir fundo nesse retrato dos conflitos internos, dos sonhos, do medo da morte, do sonho de um outro mundo – mesmo que ele seja muito vago e ingênuo. E isso é uma coisa realmente universal. Este é um livro que está cheio de pequenas histórias, a maneira como estas pessoas, para se exilarem desta situação da guerra, da violência, se afastavam construindo uma outra realidade dentro da realidade.

André Koloszuk:
Só poesia pra conseguir encarar uma realidade tão dura. Então, a gente está falando do uso de uma série de figuras de linguagem: sinestesias, hipérboles, metáforas; é uma linguagem que trabalha com sentidos conotativos, que são aqueles sentidos figurados, alegóricos, e é o que nós chamamos de prosa poética.

Som de página sendo virada

Marcelo Abud:
Mia Couto explica por que considera importante a inclusão de obras de origem africana em vestibulares brasileiros.

Mia Couto:
O Brasil tem tanto a África dentro e desconhece isso e durante muito tempo negou até isso, quer dizer, se lembrava isso de uma maneira folclórica, mas no fundo negava como é que isso era interior, era uma espécie de pedra fundadora do Brasil. E eu acho que é fundamental. O Brasil só se conhecerá bem se reconhecer como é que a África está presente no seu próprio fundamento.

Som de página sendo virada

Marcelo Abud:
Koloszuk cita pontos aos quais quem vai prestar vestibular deve se atentar.

André Koloszuk:
Eu diria que as questões sociais são muito importantes. A história da Farida, que perde um filho, é tirado dela; a própria Farida vai sofrer uma violência sexual – também pode ser um tema importante; as consequências da guerra; a violência contra as mulheres (o próprio tema do machismo é um tema importante aqui); a própria literatura como uma válvula de escape, uma fuga diante dessa realidade tão sofrida e tão dura; a própria estrutura do livro, né, a linguagem – eu acho que pode-se ir por esse caminho nas questões.

Marcelo Abud:
O professor seleciona e lê um trecho de “Terra Sonâmbula”.

André Koloszuk:
Com o peito sufocado, chamo o menino. O menino estremece como se nascesse por uma segunda vez. Da sua mão tombam os cadernos. Movidas por um vento que nascia não do ar, mas do próprio chão, as folhas se espalham pela estrada. Então, as letras, uma por uma, se vão convertendo em grãos de areia e, aos poucos, todos os meus escritos se vão transformando em páginas da terra.

Mia Couto:
Num dado momento, eu lembro que estava andando por esta savana infinita do meu país, da África, e havia uma paisagem de terra vermelha e eu estava sentado na traseira de uma caminhonete e ouvi, pela primeira vez, a canção ‘Terra”, do Caetano Veloso. Aquilo foi uma epifania, era como se eu estivesse a ver pela primeira vez a terra que se abria aos meus olhos, não é? E isso persegue-me até hoje, uma espécie de relação que a canção trouxe.

Música: “Terra” (Caetano Veloso)
Por mais distante
O errante navegante
Quem jamais te esqueceria?

Música de Reynaldo Bessa, instrumental, de fundo

Marcelo Abud:
No livro “Terra Sonâmbula”, Mia Couto se vale da arte da narrativa tradicional africana. Por meio dela, compõe uma fábula que nos ensina que sonhar, mesmo nas condições mais adversas, é uma maneira de manter a utopia em busca do bem-estar comum.
Com apoio de produção de Daniel Grecco, Marcelo Abud para o Livro Aberto do Instituto Claro.

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