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“Campo Geral” foi publicado pela primeira vez em 1956, como uma das novelas que integra o livro “Corpo de Baile”, de Guimarães Rosa, e faz parte da terceira fase do Modernismo. A proposta dos autores desse período era de “retomar o espírito de invenção do primeiro Modernismo, mas, ao mesmo tempo, seguir com características que apareceram na segunda fase. No caso de Guimarães Rosa, a questão do regionalismo”, explica o professor de literatura do Anglo Vestibulares, Henrique Balbi, ouvido neste podcast.

As narrações sertanejas da região de Mutum, localizada em Campos Gerais, no nordeste mineiro (MG), adquirem caráter universal, por serem trazidas pelo ponto de vista de uma criança: o Miguilim. “Rosa fez um retrato da infância tão vívido, que, até hoje, a gente reconhece coisas típicas dos pequenos ali, mesmo tendo experiências completamente diferentes.”

Ilustração de Simone Matias para o livro “João, Joãosinho, Joãozito”, que narra a infância de Guimarães Rosa e cita o personagem Miguilim (crédito: reprodução)

Apesar de estar envolto em acontecimentos repletos de dor e morte, o menino não convive apenas com o medo, mas também com brincadeiras e descobertas. O estilo de Guimarães Rosa se faz presente na criação de uma oralidade muito própria.

“As palavras inventadas, ou aquelas palavras que são palavras antigas, mas que a gente não conhece ou não lembra, ele usa de um modo que parece que ele inventou”. Para o professor, esses recursos estilísticos da escrita de Rosa podem ser o foco do vestibular. No áudio, Balbi traz ainda outras duas apostas de conteúdo para quem está estudando para a Fuvest, além de ler um trecho do livro.

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Crédito da imagem: Reprodução capa do livro “Campo Geral”

Transcrição do Áudio

Música “Easy Day”, de Kevin MacLeod, de fundo

Henrique Balbi:
“Campo Geral”, por ser uma experiência profundamente local, a região do Mutum, em Minas Gerais, mas ao mesmo tempo falar da infância – algo que é mais universal, abrangência maior – acabaram fazendo com que ele criasse esse retrato da infância tão vívido, que, até hoje, a gente lê, a gente reconhece coisas típicas da infância ali, mesmo tendo experiências completamente diferentes.

Meu nome é Henrique Balbi, escritor, professor de literatura, professor de interpretação de texto. Vamos comentar aí um pouco a respeito do “Campo Geral”, Guimarães Rosa.

Som de página de livro sendo virada

Vinheta: “Livro Aberto – obras e autores que fazem história”

Música instrumental, de Reynaldo Bessa, de fundo

Marcelo Abud:
A novela “Campo Geral” faz parte do livro “Corpo de Baile”, escrito por Guimarães Rosa e lançado no mesmo ano de “Grande Sertão: Veredas”, em 1956. É uma narração, ao mesmo tempo, sertaneja e de temática universal. O professor do Anglo Vestibulares, Henrique Balbi, indica em que movimento literário a obra está inserida.

Henrique Balbi:
O Guimarães Rosa vem numa fase que a gente chamaria de uma terceira fase do Modernismo, que é a partir de 45 até meados de 50, 60; vêm autores que são muito inventivos: Guimarães Rosa, Clarice Lispector, João Cabral de Melo Neto… Em termos de estilo, eles são muito diferentes, mas eles têm uma certa proposta similar: de retomar aquele espírito de invenção do primeiro Modernismo, mas, ao mesmo tempo, continuar coisas que apareceram nessa segunda fase. No caso do Guimarães Rosa, mais a questão do regionalismo, de um lado, o “Grande Sertão Veredas”, que é o grande romance, talvez a obra prima dele. E o “Corpo de Baile”, que é o livro conjunto de histórias mais ou menos longas, novelas que contém no “Campo Geral”, a história do Miguilim…

Música: “Um Miguilim” (Edson Penha / Xavier Bartaburu), com Grupo Nhambuzim

“Um lugar, Mutum / Um covão, um lá / De serras a rodear / Arroios a cochichar / Cantiga de reverberar”

Henrique Balbi:
“Campo Geral” é basicamente a história da infância do Miguilim. Vai até mais ou menos o começo da vida adulta, num meio rural, o Mutum, em Minas Gerais, perto ali do Vale do Rio Doce. A gente acompanha os medos, as brincadeiras, as descobertas que o Miguilim vive.

Som de página de livro sendo virada

Marcelo Abud:
“Campo Geral” é uma das leituras da lista da Fuvest. Balbi faz uma análise de possíveis aspectos que o vestibular costuma observar.

Henrique Balbi:
Algumas possibilidades que a gente pode pensar: a primeira delas seria uma identificação dos recursos que o Guimarães Rosa usa; por um lado, reinventar uma certa oralidade – falar mineiro –; reinventar porque não é exatamente reproduzir, ninguém exatamente fala do jeito que o Guimarães Rosa escreve. Ele cria um texto de um modo que parece muito essa oralidade. E, por outro lado, é tentar refrescar de algum modo o nosso olhar pra realidade, essa poesia, essa riqueza expressiva da vida.

Ele vai fazer isso muito na manipulação da frase, uso de figuras sonoras, como a aliteração – repetição de consoantes –, ou a assonância, que é a repetição de vogais; inverter a ordem direta da frase pra dar a impressão de oralidade também, pra fazer com que a gente enxergue de uma outra maneira coisas que seriam comuns, cotidianas, triviais.

Realmente está muito próximo daquela ideia inicial do Modernismo e, lógico, as palavras inventadas, ou aquelas palavras que são palavras antigas, mas que a gente não conhece ou não lembra e ele usa de um modo que parece que ele inventou a palavra, mas é uma palavra que está até no dicionário.

Marcelo Abud:
A segunda aposta do professor é na comparação entre Guimarães Rosa e outros autores da literatura brasileira.

Henrique Balbi:
O Casimiro de Abreu vai tratar da infância, uma infância idealizada. “Que saudade que eu tenho da aurora da minha vida, dos meus oito anos”; o Manuel Bandeira, por exemplo, também é um autor que trabalha muito a questão da infância.  E como eles trabalham em comparação com o Guimarães Rosa? São mundos similares, são mundos diferentes? Do que eles se aproximam e o que eles são distintos?

Marcelo Abud:
Um ponto que já caiu em outros exames de vestibular e que pode vir em uma questão dissertativa é como o Guimarães Rosa trabalha o ponto de vista da história em “Campo Geral”.

Henrique Balbi:
Então, a gente tem um narrador, que é um narrador em terceira pessoa, que dá uma ideia de distância, de objetividade, de completude, a gente teria todas as informações sobre o mundo que aquelas personagens vivem; mas, ao mesmo tempo, esse narrador em terceira pessoa ele vai se concentrar mais na perspectiva do Miguilim. Eu tenho aí uma diferença entre o narrador e o foco narrativo, que é o narrador em terceira pessoa, onisciente, amplo, mas que vai se restringir ao ponto de vista, ao foco narrativo do Miguilim. O leitor só tem acesso, digamos assim, a aquilo que o Miguilim sente, percebe, descobre. Mas, evidentemente, como o leitor tem esse conhecimento maior, ele entende, pela perspectiva do Miguilim, coisas que o Miguilim não entende. Então, essa proximidade e distância, ao mesmo tempo, entre o narrador e o foco narrativo é algo que coloca o leitor numa postura ativa.

Som de página de livro sendo virada

Marcelo Abud:
O entrevistado ressalta ainda o que é ao mesmo tempo local e universal no livro.

Henrique Balbi:
Tem a relação dele com a mãe, ele tem uma relação mais tensa com o pai. O pai é uma pessoa um pouco violenta, autoritária em relação ao Miguilim. Umas das principais relações que a gente acompanha é a relação do Miguilim com o Dito, que é o irmão mais próximo dele, é o irmão preferido. É uma historia de infância, mas, ao mesmo tempo, lida com questões bastante pesadas.

Música: “Nonada de mim” (Edson Penha), com Grupo Nhambuzim
“Sabe, senhor / O amor faz trapaça, senhor / Nos embebeda em desgraça / Nonada de mim”

Marcelo Abud:
Henrique Balbi lê um trecho de “Campo Geral” e explica o porquê da escolha.

Henrique Balbi:
O momento final mais bonito, talvez, é quando vem um homem da cidade, um médico, que descobre que o Miguilim é míope. E, aí, ele oferece os óculos dele e o Miguilim coloca os óculos e é uma imagem muito bonita porque mostra um pouco essa redescoberta desse mundo. Possivelmente, o Miguilim sai do Mutum pra morar na cidade, aí se encerra, mais ou menos, esse arco da infância do Miguilim.

Som de página de livro sendo virada

Música “Are You Slleping”, de The Green Orbs, de fundo

Henrique Balbi:
Miguilim espremia os olhos. Drelina e a Chica riam. Tomézinho tinha ido se esconder.

– Este nosso rapazinho tem a vista curta. Espera aí, Miguilim…

E o senhor tirava os óculos e punha-os em Miguilim, com todo o jeito.

– Olha, agora!

Miguilim olhou. Nem não podia acreditar! Tudo era uma claridade, tudo novo e lindo e diferente, as coisas, as árvores, as caras das pessoas. Via os grãozinhos de areia, a pele da terra, as pedrinhas menores, as formiguinhas passeando no chão de uma distância. E tonteava. Aqui, ali, meu Deus, tanta coisa, tudo… O senhor tinha retirado dele os óculos, e Miguilim ainda apontava, falava, contava tudo como era, como tinha visto. Mãe esteve assim assustada; mas o senhor dizia que aquilo era do modo mesmo, só que Miguilim também carecia de usar óculos, dali por diante.

Música: “Um Miguilim” (Edson Penha / Xavier Bartaburu), Grupo Nhambuzim
“Um Miguilim / Que arrebenta a trava do ver / Que arrebata em turvo espelhar / Quem conhecer, sem esperar, / nele a si próprio vê. Lá!”

Música instrumental, de Reynaldo Bessa, de fundo

Marcelo Abud:
O momento em que Miguilim passa a ver o mundo pelas lentes dos óculos é a metáfora que representa a transição em como enxergava o mundo e a descoberta de novos olhares diante do amadurecimento.

Com apoio de produção de Daniel Grecco, Marcelo Abud para o Livro Aberto, do Instituto Claro.

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