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“Sagarana”foi publicado pela primeira vez em 1946. Na obra, João Guimarães Rosa já tratava de um sertão diferente daquele apresentado em boa parte das obras regionalistas.

“Ele tem uma visão da região como o lugar dominado pelas armas, pela lei do mais forte, a traição e a busca da vingança. É um lugar onde a justiça não chegou, as instituições não chegaram”, afirma o professor do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), Luiz Dagobert de Aguirra Roncari, ouvido pelo Instituto Claro neste podcast.

Professor Luiz Roncari diante de edições históricas de “Sagarana” (crédito: Marcelo Abud)

 

O especialista pesquisa a vida e obra do escritor mineiro há três décadas e tem alguns livros publicados sobre Rosa, que, de acordo com ele, explora as possibilidades literárias de diferentes tipos narrativos. Em cada um dos nove contos de “Sagarana”, o autor experimenta um estilo: das fábulas medievais à literatura mais moderna de seu tempo.

No áudio, o professor afirma que Guimarães Rosa tinha a vivência da vida rústica, intelectual e espiritual do sertão, mas também curiosidade em relação à literatura e à cultura universal europeia, tanto clássica como moderna. “Ele juntava a experiência da região com o conhecimento erudito”, afirma.

Ainda na entrevista, Roncari cita e analisa o conto “A Hora e vez de Augusto Matraga”, além de ler e comentar um trecho de “São Marcos”, em que três arquétipos do amor são representados como três árvores, que podem perder ou salvar o homem.

Ilustração de Poty para uma das edições clássicas de “Sagarana” (crédito: reprodução)

 

Link:
Podcast sobre a biografia de Guimarães Rosa, com o escritor Alaor Barbosa

Créditos:
Os trechos de músicas utilizados na edição do podcast, por ordem de entrada, são: “Lamento Sertanejo (Gilberto Gil), com Hamilton de Holanda e Mayra Andrade”;“Corisco” (Sérgio Ricardo/Glauber Rocha), com Sérgio Ricardo; e“Augusto” (Edson Penha, Sarah Abreu e Joel Teixeira), com o Grupo Nhambuzim. As trilhas de fundo são de Reynaldo Bessa.

Transcrição do áudio:

Vinheta: “Instituto Claro”

Vinheta: “Livro aberto: obras e autores que fazem história”

Trilha de fundo

Marcelo Abud:
“Sagarana” é o primeiro livro do escritor mineiro João Guimarães Rosa. Publicado em 1946, já revela um sertão marcado pela lei do mais forte em histórias repletas de vingança e traição.

A análise é do professor do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da USP, Luiz Roncari, que participa deste Livro Aberto.

Luiz Roncari:
Sagarana é uma junção de um termo germânico, Saga (histórias), e Rana que é um termo tupi-guarani, que significa “parecido com”,“uma coisa falsa”, parecido com umasaga, parecido com uma fábula.

Marcelo Abud:
É ainda na infância, em Cordisburgo, Minas Gerais, que Rosa toma contato com o universo sertanejo.

Luiz Roncari:
O pai dele tinha uma loja de comércio para onde vinham os boiadeiros, a gente do sertão, aos sábados, no finalde semana, fazer compras. E, ali, ele conhecia essa gente do sertão, ouvia as histórias. Então, ele tinha uma experiência muito rica com a linguagem do sertão, com os homens do sertão, com as histórias do sertão. Esse lado da vivência. Mas tinha a curiosidade também da literatura, da cultura, vamos dizer assim, universal europeia, seja clássica, seja moderna.

Música: Lamento Sertanejo (Gilberto Gil), Hamilton de Holanda e Mayra Andrade
“Por ser de lá, do sertão, lá do serrado, lá do interior do mato”

Luiz Roncari:
De todas as fontes eruditas e brasileiras, ele criou uma literatura muito própria, que funde tudo isso de fontes muito distintas e quase que opostas, numa coisa muito própria. E num tempo em que se discutia muito se “o Brasil ia dar o quê:sertão ou civilização?”.

Som de página de livro sendo virada

Marcelo Abud:
Roncari afirma que o sertão da obra de Rosa vai além do encantamento e revela também a realidade da região.

Luiz Roncari:
A literatura regionalista, que é a literatura dominante durante o período de formação dele, fazia do sertão uma visão um tanto quanto idílica. Lugar pitoresco, lugar do gado, lugar do cangaço e tal, e dava uma visão curiosa, pitoresca… Ele tem uma visão do sertão como um lugar onde domina o que? As armas, a lei do mais forte, a traição, a busca da vingança. É um lugar onde a justiça não chegou, as instituições não chegaram. Então é um lugar de litígio.

Música: Corisco(Sérgio Ricardo/Glauber Rocha), Sérgio Ricardo
“Se entrega, corisco / eu não me entrego não (tiros)/ Se entrega, corisco”

Luiz Roncari:
E o tema das histórias de “Sagarana” é justamente este. Todas as histórias têm uma questão relacionada à traição, a busca da vingança, o domínio da violência e o lugar do litígio e do conflito. Sertão é isso, é o lugar onde domina a lei do mais forte, domina as armas.

Marcelo Abud:
O professor aponta o que faz de “Sagarana” uma narrativa ainda atual.

Luiz Roncari:
No “Grande Sertão: Veredas”tem uma canção muito interessante que cantavam os jagunços, que era assim: “Olerer, baiana, eu ia e não vou mais / Eu tava no meio, baiana, voltei do meio para trás”. “Voltei do meio para trás”, quer dizer, o Brasil é isso: ele oscila entre progresso e regresso. Ele avança no campo civilizatório. Oque que é civilização? É onde se busca pacificar as relações, resolver as relações através da conversa, do diálogo, do argumento. Isso é civilização. É onde se tem uma instituição chamada justiça que não persegue, não é partidária. Mas ela busca evitar com que os homens se agridam nos momentos de litígio. Isso não acabou. O Brasil vai e volta, ora domina uma situação mais civil, mais pacífica, mais pacificadora, ora domina a lei do mais forte, a lei das armas.

Marcelo Abud:
Um dos contos mais conhecidos do livro é “A Hora e a vez de Augusto Matraga”.

Luiz Roncari:
É um coronel, que usa e abusa do poder dele pessoal. Que sofre uma vingança, é praticamente destruído, jogado num fundo de um vale e um casal de ex-escravos negros cuidam dele, reabilitam ele, que renasce e se renova depois dessa destruição.

Música: “Augusto” (Edson Penha, Sarah Abreu e Joel Teixeira), Grupo Nhambuzim
“Um beato dedicado, uma alma com seus vícios / a cruz, a enxada, o louvor, a batalha ensinada, brotando em seu coração / Augusto, o que há com você? / Augusto, chega de se esconder”

Luiz Roncari:
É uma história clássica do sujeito quase que dionisíaca, do Dionísio, que é estraçalhado e depois tem um segundo nascimento. Ele tem também uma ressureição, um renascimento e tem uma morte trágica, porque, ao mesmo tempo que ele impede o mal do chefe jagunço, o Joãozinho Bem Bem, mas morre junto, como os herós trágicos. Então talvez “Augusto Matraga” seja o mais atual, o mais forte e a história mais trabalhada e melhor acabada.

Marcelo Abud:
Luiz Roncari explica e, logo em seguida, lê um trecho de outro dos novecontos de “Sagarana”: “São Marcos”. Nele, três arquétipos do amor são representados como três árvores.

Luiz Roncari:
Uma primeira árvore, a Venusberg, Venusberg é a montanha de Vênus, que, na ópera de Vagner, é o lugar dos sentidos e do amor sexual. Ele descreve essa árvore como um falo masculino e violento, o amor masculino. O segundo é uma árvore que reflete sobre a colher de vaqueiros, faraônica, do amor egípcio, que é um amor feminino, que passa pelo erótico, pelos sentidos, pelos perfumes, pelos enfeites, pela visão, enfim passa por todos os sentidos. E o terceiro amor é o amor santo, que é o amor fecundante da vida. Então é uma árvore cheia de formigas, de mel, de abelhas, aquele amor de mãe mesmo, materno, que se cultua da fecundação.

Sons de pássaro, abelhas e vespas ao fundo

Luiz Roncari:
“Chegamos ao sanctodos santos das Três Águas. A suinã, grossa, com poucos espinhos, marca o meio da clareira. Muito mel, muito bojuí, jati, uruçu, e toda raça de abelhas e vespas, esvoaçando; e formigas, muitas formigas marinhando tronco acima. A sombra é farta. E há os ramos, que trepam por outros ramos. E as flores rubras, em cachos extremos – vermelhíssimas, ofuscantes, queimando os olhos, escaldantes de vermelho, cor de guelras de traíra, de sangue de ave, de boca e baton”.

Trilha de fundo

Marcelo Abud:
Luiz Roncari considera “Sagarana” um livro fundamental para quem quer entrar no universo de Guimarães Rosa. Na obra, em cada um dos nove contos, o autor experimenta um tipo de narrativa diferente, das fábulas medievais à literatura mais moderna de seu tempo.

Com apoio de produção de Daniel Grecco, Marcelo Abud para o Instituto Claro.

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