Gari é o nome dado ao profissional de limpeza urbana responsável tanto pela varrição das vias públicas quanto pela coleta do lixo. O termo remete ao empreiteiro francês Aleixo Gary que, em 1876, ficou responsável pela limpeza das ruas do município do Rio de Janeiro (RJ). 

Assim como acontece com pessoas pobres, em situação de rua e outras profissões ligadas à limpeza, o gari é vítima da chamada invisibilidade social —  fenômeno complexo em que um homem se torna invisível às outras pessoas da cidade. 

“É o desaparecimento de um homem perante a outros, ocasionado por fatores sociais, econômicos e históricos. Somente aquele que sente na pele os seus efeitos, sabe o que é”, compartilha o gari e historiador Ednilson de Pontes Silva, conhecido como Deninho Gari (@deninhogari).  

Crédito: Acervo pessoal – Fernando e Deninho.

Deninho trabalha há 12 anos com varrição de rua em Pirpirituba (PB), região com um pouco mais de 10 mil habitantes. Mesmo sendo uma cidade considerada pequena, quando ele está uniformizado, relata não ser reconhecido na rua pelos amigos. 

As pessoas não olham nos nossos rostos enquanto trabalhamos. Não raro também me confundem com o meu companheiro de trabalho, que fisicamente não é nada parecido comigo”, diz.

Em Belo Horizonte, o gari Rafael Rodrigues (@rafagaridobem) relata uma experiência parecida. “As pessoas não nos dão bom dia ou boa tarde. E há também discriminação: de você pedir um copo de água e recusarem ou de pegar um metrô cheio de pessoas em pé e o banco do seu lado permanecer vazio. Acho que a maior parte do preconceito é por você mexer com o lixo. Como se estivesse sujo ou fosse transmitir alguma doença”, opina Rodrigues.  

Pioneiro no estudo de invisibilidade social no Brasil, o doutor em psicologia Fernando Braga da Costa defendeu a sua tese de doutorado na Universidade de São Paulo (USP), no início dos anos 2000, após permanecer uma década trabalhando como gari na própria universidade.

Na pesquisa, que virou o livro “Homens invisíveis: relatos de uma humilhação social”, Costa narra situações em que, ao vestir o uniforme, colegas, professores e amigos que passavam por ele pelos corredores da faculdade o ignoravam. 

“Um gari que entrevistei, o Chico, disse: ‘isso acontece com todo mundo aqui. Se a gente não tira a bicicleta ou o corpo da frente, eles (carros) passam por cima”, relembra Costa. 

Créditos: Acervo pessoal – Deninho e o pai

“Quanto mais pobre, mais invisível”

Costa explica que a invisibilidade social é um fenômeno do capitalismo. “Atinge todos que não estão no comando do capital. Quanto mais pobre, mais invisível”, enfatiza. Mas, por qual razão ele acontece especificamente com os garis? 

Para os especialistas há dois fatores. O primeiro é a “humilhação social” que classifica o gari como uma profissão de “segunda categoria”.

“Historicamente, os serviços de limpar detritos ou a sujeira que produzimos sempre foi o conjunto de tarefas que os seres humanos recusaram. Desta forma, uma classe inteira de pessoas consideradas ‘imprestáveis’ para funções teoricamente mais complexas, ao assumir tal empreitada, torna-se rebaixada em sua dignidade”, analisa Costa. 

“A sociedade enxerga as pessoas pela função e pelo prestígio social. Quanto menos prestígio, menos visibilidade”, resume Deninho.

“Lembro dos meus pais, quando era criança, dizendo que se não estudasse me tornaria lixeiro. O problema é que a população só sente falta do gari quando o lixo dela não é coletado”, lamenta Glauber Oliveira, gari de Florianópolis (SC).

O segundo motivo seria um fenômeno chamado ‘coisificação’, ou seja, o gari é confundido com o objeto que ele manipula, o lixo: “seres humanos são confundidos com a natureza de suas ocupações profissionais”, explica Costa.

Em 2019, ao se formar em história na Universidade Estadual da Paraíba (Uepb), Deninho escolheu a invisibilidade social dos garis como tema para a sua monografia e entrevistou outros profissionais da limpeza urbana do país. No dia da defesa, vestiu seu uniforme.

“Meu pai é gari há 23 anos e eu mesmo nunca enxerguei a profissão dele antes de ter a mesma experiência. A universidade me ajudou a abrir os meus olhos para a importância dessa função, além do preconceito e invisibilidade que toda a classe de garis sofre. Foi uma virada de chave”, destaca. 

Perda de identidade

Ser invisível socialmente impacta como a pessoa que trabalha de gari se sente e se expressa. “O desprezo para a função de gari leva a uma perda de identidade, além de depressão e ansiedade”, aponta Deninho.

Para Costa, mudar o panorama da invisibilidade social passa, entre outros fatores, por uma educação sobre direitos humanos, sistemas econômicos e divisão do trabalho.

“É fundamental fortalecer a educação pública ensinando história geral, história da África e imperialismo, assim como levar juízes, desembargadores, ministros, médicos, engenheiros, diretores, CEOs para uma temporada de um ano varrendo ruas, limpando cestos de lixo, lavando privadas”, opina.

Também exige repensar a relação da sociedade com o consumo e o destino do lixo. “Se existem garis, é porque fomos incapazes de nos organizarmos de outra forma para cuidar da limpeza dos lugares, e não porque são sujeitos desqualificados”, ressalta Costa.

Deninho sugere o exercício de um olhar empático para mudanças sociais. “Se você vai a uma consulta médica, mesmo que se passe alguns anos, provavelmente reconhecerá esse profissional quando o avistar em algum lugar. Mas isso não acontece com o gari que muitas vezes varre a sua rua por anos. Mudar isso exige mais empatia e atenção ao próximo”, finaliza. 

Veja mais:

Websérie traz histórias de pessoas que sofrem com invisibilidade social.

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