Leonardo Valle

Imagine que a água de um rio é compartilhada por uma indústria e uma fazenda de alimentos e, ainda, consumida pelos moradores que vivem no entorno. Certo dia, a indústria passa a captar mais desse recurso natural do que o habitual, deixando os outros dois setores, literalmente, na seca.

Para resolver esse conflito, será necessário levá-lo para discussão no Comitê de Bacias Hidrográficas – órgão responsável pelo diagnóstico de problemas e monitoramento da região. Ele faz parte do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (Singreh), criado pela Lei das Águas (nº 9.433).

Esse ente reúne representantes do poder público; sociedade civil e usuários significativos de água da bacia, como empresas públicas, indústrias, estatais e outros que possuem autorização para captação em grande escala.

Segundo as resoluções do Conselho Nacional de Recursos Hídricos, cada estado pode definir as proporções entre esses três representantes, desde que sigam quantidades mínimas: pelo menos 20% de representantes da sociedade civil, máximo de 40% para o poder público, e sempre 40% para os usuários.

“Mas, na prática, aproximadamente 97% dos comitês de bacias estaduais disponibilizam 40% para sociedade civil, 40% para usuários e 20% para poder público”, explica a pesquisadora e professora da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Larissa de Lima Trindade.

A atuação dos comitês é estadual ou interestadual. “Os rios que nascem e deságuam no mesmo estado são de responsabilidade dele. Já os que nascem e deságuam em estados diferentes, são da União”, diferencia o secretário executivo do Observatório da Governança das Águas (OGA Brasil), Ângelo Lima.

Cada estado é dividido geograficamente em bacias e cada uma delas ganhará um comitê específico. “Há ainda os comitês de bacias interestaduais, como os do Rio Doce e Rio São Francisco”, resume ele.

Água para todos

A composição do comitê é definida por voto. A cada dois anos, o governo estadual lança um edital para definição dos membros, no qual as entidades se cadastram.

“São marcadas assembleias para os três setores, nas quais cada um escolhe, entre seus pares, aqueles que irão representá-los no comitê”, explica o secretário.

Com o conselho formado, os membros se juntam em reuniões para fazer análises da situação da região e resolver problemas, principalmente os relacionados à quantidade, qualidade da água e à preservação ambiental.

“Apesar de ser um bem comum, a água tem potencial econômico, sendo usada para geração de energia, agropecuária e indústria. Pela lei, contudo, as pessoas e os animais têm prioridade sobre as atividades econômicas”, esclarece Trindade.

“A preservação ambiental também garante o abastecimento e evita desastres, como enchentes e crise hídrica, que não são naturais, mas acontecem em decorrência da falta de planejamento e execução”, contextualiza Lima.

O cidadão comum pode acompanhar as reuniões como ouvinte ou se associar às instituições da sociedade civil que irão representá-lo. “Ele ainda pode levar um determinado problema para o conselho, coisa que muitos desconhecem: optam por direcionar a questão à companhia de abastecimento ou ao Ministério Público (MP)”, orienta Trindade.

Olhar preciso

Lima recorda que os comitês são o único espaço legal nos quais diferentes interesses são representados. O objetivo é tomar decisões que sejam consensuais entre as três esferas participantes.

“Decisões somente pautadas pelo poder econômico são prejudiciais. Quando são negociadas, construídas pelo diálogo e atendem a todos, são mais fáceis de serem implantadas e têm maior chance de sucesso”, justifica.

Segundo Trindade, os comitês são a primeira instância para a resolução de um problema hídrico, que ainda pode seguir para o Conselho Nacional de Recursos Hídricos e para a Agência Nacional das Águas (ANA).

“Seu diferencial é ser uma instância local, perto da população que sofre com o problema relatado”, defende.

O modelo de distribuição de comitês por todo o Brasil também ajuda a olhar para as diferentes realidades do país em relação à água. “Por exemplo, o Sudeste apresenta menos recursos e mais poluição. O Nordeste pode sofrer com a seca”, diferencia.

Disputa por recursos

O país possui aproximadamente 230 Comitês de Bacias Hidrográficas, segundo o Ministério do Desenvolvimento Regional. “Alguns, infelizmente, só existem por conta da lei, não sendo atuantes”, lamenta Trindade.

Um dos motivos é a falta de recursos. “Sem verba para o diagnóstico real da situação daquela bacia, não tem como propor ações”, informa Lima.

Entre os retrocessos recentes, o especialista destaca a desvinculação de 30% da receita do Fundo Estadual de Recursos Hídricos do Rio de Janeiro, em 2019. “Na prática, um recurso que era somente para as águas agora pode ser usado em outras áreas”, explica o secretário.

Outro desafio é fortalecer a relevância desses entes. “Quando o cidadão denuncia um problema ao MP, esse não repassa aos comitês”, aponta Trindade.

Os dados e opiniões desse conselho, não raro, são desconsiderados pelo próprio estado. “Por exemplo, o comitê se posiciona contra o represamento de um rio porque suas análises apontam impacto ambiental. Mesmo sendo o parecer de uma gestão democrática e compartilhada, o governo pode não acatá-lo”, ilustra.

Atualizada em 25/3/2020 às 13h05.

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Crédito da imagem: Nodar Chernishev – iStock

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