Os impactos sociais e ambientais da privatização de áreas à beira-mar passaram a ser discutidos após a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 3/2022 do Senado, batizada de PEC das Praias. “Ela prevê a extinção dos chamados terrenos de marinha, que não estão relacionados à Marinha do Brasil, mas são áreas próximas à costa marítima brasileira. Elas incluem praias, ilhas, mangues, assim como também os rios e lagoas que sofrem influência da maré”, destaca a porta-voz do Greenpeace Brasil Gabriela Nepomuceno. “A PEC transfere esses terrenos, que são do domínio da União, para estados e municípios, mas também para particulares e ocupantes dessas áreas”, complementa.
Coordenadora do laboratório de geografia marinha da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Flavia Lins de Barros explica que essas áreas existem desde 1831 e são medidas contando 33 metros da beira-mar para dentro do continente. “Ela geralmente abrange uma faixa de areia e, em locais aterrados, pode chegar à linha da rua”, destaca. “Na prática, a extinção dos terrenos de marinha não privatizaria a praia em si, mas o acesso a ela”, diferencia.
Atualmente, o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro (Lei 7.661/1988) afirma que as praias são bens públicos, de uso comum do povo e com acesso assegurado, exceto aos trechos de segurança nacional e áreas protegidas. “É proibida a urbanização ou utilização que impeça ou dificulte o acesso à praia. Assim, as porções de praia dos terrenos de marinha não poderão ser ocupadas ou ter titularidade transferida para privados”, resume o membro da Cátedra Unesco para a Sustentabilidade do Oceano Alexandre Turra.
Argumentos contra e a favor
“Quem é a favor do projeto diz que ele vai viabilizar o desenvolvimento do litoral, turismo, empreendimentos e gerar emprego, mas desconsidera o alto custo social e ambiental”, afirma Nepomuceno.
“Os defensores dizem que a legislação necessita de atualização, que os terrenos da Marinha são difíceis de demarcar. Porém, há diversas normativas já previstas para delimitar essas áreas, mas que exigem fiscalização e investimentos”, opina Barros.
Os argumentos contra o projeto lembram que os terrenos da Marinha servem de proteção para ecossistemas à beira-mar, como dunas, restingas e manguezais. “Eles protegem contra avanço do mar, erosão e são o berçário de diferentes espécies. Extinguir os terrenos da União fragilizaria essas áreas, já que as construções não necessitariam mais do aval do serviço patrimonial da União”, pondera Barros.
Um segundo argumento contrário é justamente a privatização do acesso à praia. “Os empreendimentos poderiam dificultá-lo com construções extensas, constrangendo banhistas e comunidades que sobrevivem da praia, ou até restringindo o acesso pela areia, liberando-o apenas via mar”, exemplifica Barros.
A quem interessa a privatização de praias?
Para a porta-voz do Greenpeace, o maior interesse nessa aprovação é a especulação imobiliária e o lobby de grandes empresas, construtoras, resorts e empreendimentos hoteleiros. “É uma oportunidade de investimento e de expansão”, comenta.
Turra explica que a área de planície costeira é cobiçada pelo mercado imobiliário. “O problema da PEC está na privatização de uma porção dos terrenos de marinha já ocupada nas planícies costeiras, propondo que estes sejam repassados definitivamente para os entes privados, os quais deixarão de pagar foro ou taxa de ocupação. A motivação da PEC está nessa tributação”, analisa.
Perda de espaço de recreação e lazer
Em relação aos impactos sociais, Barros lembra que haveria a perda de um espaço democrático de recreação e lazer. “Esses empreendimentos hoteleiros não são para todos. A praia deixa de ser um local de encontro com a natureza para se transformar em um negócio”, alerta Barros.
“A PEC fará com que as praias, o principal ponto de conexão das pessoas com o mar, fique restrito a um pequeno grupo de privilegiados”, enfatiza Turra. Nepomuceno lembra que privatizar a área colocaria em risco inúmeras populações originárias e tradicionais cuja sobrevivência e cultura dependem da praia, como ribeirinhos, quilombolas, indígenas, pescadores, entre outros. “Com a pressão imobiliária e turística, elas seriam expulsas, como já acontece historicamente”, adiciona Barros.
Erosão e avanço do nível do mar
Quando o assunto são impactos ambientais, Turra explica que a ocupação da costa interfere na dinâmica de sedimentos, que provoca erosão e avanço do nível do mar. “O sedimento das praias é dinâmico, mobilizado pelo vento, ondas e marés. Ora ele está acumulado na praia, dunas e planícies costeiras, ora submerso, sendo reposto pelo sedimento trazido pelos rios também”, ensina.
“Tal processo é afetado por construções em terrenos de marinha porque nem toda a areia que sai da praia volta, criando um processo crônico de erosão. Processo também influenciado por mudanças climáticas”, lamenta.
Segundo o Panorama da Erosão Costeira no Brasil (2018), cerca de 40% da costa brasileira já estão em estágio avançado de erosão. Além disso, Barros explica que as construções em áreas da Marinha comprometem barreiras naturais para o avanço do nível do mar, caso de manguezais e dunas. “Basta eliminar um pouco dessa vegetação que as dunas são atingidas. Enquanto as restingas são protegidas legalmente, as dunas não o são”, enfatiza.
Segundo Turra, o marégrafo instalado na Base do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (USP), em Cananéia (SP), há 70 anos mostrou uma elevação do nível do mar de 22 centímetros entre 1954 e 2009. “A PEC cria uma situação paradoxal, vendendo um espaço que está sob risco de desaparecer em função dos processos erosivos e da elevação do nível do mar”, comenta Turra.
“Os proprietários podem querer investir em muros de arrimo para impedir o avanço do nível do mar. Mas isso comprometerá ainda mais o balanço sedimentar, os processos erosivos e a perda das praias e manguezais”, contextualiza Turra.
O que esperar no futuro?
Turra explica que a Secretaria do Patrimônio da União (SPU) deveria demarcar os terrenos de marinha. “Sem essa ação, sequer a PEC 3/2022 poderia ser implementada pois não há o levantamento dos imóveis que poderiam ser beneficiados e tampouco o impacto financeiro da redução da tributação para os cofres públicos, aspecto que precisa ser considerado para discutir essa questão”, assinala.
Ele também defende a implementação do Programa Nacional para Conservação da Linha de Costa (Procosta). “Com ele, é possível identificar as áreas que devem cumprir um papel na proteção da costa. Além de manter os terrenos de marinha, é possível que áreas privadas precisem ser estatizadas”, adianta.
Já a porta-voz do Greenpeace alerta para outros projetos de lei no Congresso que restringem o acesso às praias, como o 4.444/2021. “Esse defende a privatização direta da praia, não apenas do acesso a ela”, finaliza.
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Crédito da imagem: Anderson Coelho – Getty Images