A Assembleia Geral das Nações Unidas declarou 2022 como Ano Internacional da Pesca Artesanal e da Aquicultura (IYAFA 2022). A pesca artesanal é aquela realizada por comunidades tradicionais, de mão de obra familiar e que utiliza pequenas e médias embarcações, como jangadas e canoas. Em muitas vezes, nem embarcações são necessárias – caso da captura de espécies aquáticas próxima à costa.
“O pescador artesanal utiliza os conhecimentos dos ciclos de vida dos peixes e da natureza. Ele alterna as espécies capturadas ao longo do ano, deixando de pescar aquelas que estão em período de reprodução. Com isso, há menor impacto ambiental”, explica a oceanógrafa, doutora em ciências sociais e membro do Laboratório Maréss (FURG) Tatiana Walter.
A prática é diferente tanto da psicultura – cultivo de peixes em ambientes controlados – quanto da pesca industrial. Esta última é praticada em larga escala, com grandes embarcações e focando poucas espécies. “A pesca industrial é predatória, pois captura diversos tipos de espécies para aproveitar apenas aquelas com valor comercial. Também não se preocupa com os ciclos de vida das espécies”, diferencia a coordenadora do Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais, Josana Pinto da Costa.
Patrimônio cultural
A pesca artesanal é também considerada patrimônio cultural por dialogar com tradições e modos de vida que são transmitidos de geração para geração de pescadores. “Cada comunidade ribeirinha organiza a pesca artesanal em cima dos seus conhecimentos e normas próprias. Estabelece o tipo de rede para capturar as espécies, as embarcações, entre outros”, diz Costa.
“A pesca artesanal é produtora de cultura, com origem associada aos indígenas, aos povos africanos e aos portugueses. As manifestações culturais se fazem presentes na produção dos barcos, de artesanatos, na realização de procissões e festas religiosas, como as em homenagem a Yemanjá e a Nossa Senhora dos Navegantes”, exemplifica Walter.
Em termos sociais, a atividade é responsável pela subsistência, segurança alimentar, geração de renda e erradicação da pobreza de comunidades ribeirinhas e povos tradicionais. Caso de Costa, que era trabalhadora rural e assumiu a atividade ao se casar com um pescador da comunidade de ribeirinhos Amador, no município de Óbidos (PA).“Nós, pescadores artesanais, nos reconhecemos como produtores de alimentos e temos a pesca como geração de renda para inúmeras famílias. Ela também é espaço de inclusão econômica de mulheres, que trabalham em parceria com seus companheiros ou que são chefes de família e encontram na atividade o seu sustento”, complementa.
Profissionais invisíveis
A Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) estima 110 milhões de trabalhadores em todo o mundo envolvidos com a pesca de pequena escala. No Brasil, a atividade é mais importante para a economia do que muita gente imagina. “O país não possui estatísticas oficiais, mas são estimadas 1 milhão de pessoas nessa atividade, que é responsável por 60% da produção do pescado do país – mais do que a pesca industrial”, compara Walter.
Segundo a pesquisadora, a falta de estatísticas prejudica a atividade e impede pescadores de acessarem benefícios sociais. “O primeiro aspecto é a invisibilidade. Sem estatísticas, a sociedade tende a achar que a pesca artesanal é pouco importante, periférica, atrasada e que irá acabar. Em termos produtivos, não sabemos o número pescadores, quanta renda a atividade gera, como é sua arrecadação impostos ou a quantidade de alimentos produzidos”, lamenta.
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Costa conta que a burocracia faz com que muitos pescadores não consigam se cadastrar no Registro Geral de Pesca (RGP). “O governo passou a exigir cadastro online, sendo que muitas comunidades não possuem internet”, aponta. Sem o RGP, o pescador artesanal fica impedido de acessar o Seguro Defeso, salário que recebe durante o período em que a pesca fica impedida para a reprodução e preservação das espécies.
Walter explica que, devido à invisibilidade, um orçamento real para a pesca artesanal não é estipulado, assim como a delimitação de áreas que sejam exclusivas para essa atividade.
“Por exemplo, na Noruega, há territórios específicos para a atividade petroleira e para a pesca, as duas atividades econômicas mais importantes do país”, ilustra.
Conflitos socioambientais
No Brasil, a falta de áreas delimitadas para a pesca artesanal é responsável por conflitos socioambientais. Construção de resorts turísticos, atividade petroleira, portuária e mineração são algumas das que expulsam os pescadores artesanais das suas regiões.“Como se ignora que aquela região é de pescadores, outras atividades econômicas se instalam e inviabilizam a pesca artesanal. Assim, incentivar a pesca exige reconhecer a atividade e territórios pesqueiros que precisam ser preservados”, acredita Costa.
Em 2021, o Conselho Pastoral de pescadores publicou o Relatório dos Conflitos Socioambientais e Violações de Direitos Humanos em Comunidades Tradicionais Pesqueiras no Brasil. Foram mapeados 434 conflitos socioambientais vivenciados por comunidades pesqueiras em 14 estados do Brasil. Segundo o material, estes foram provocados por empresas privadas, mas também por empresas públicas, governo e polícia militar.
A manutenção da pesca artesanal depende ainda da qualidade do meio ambiente. “A poluição das águas piorou com o aumento da mineração e de garimpos ilegais, que provocam contaminações”, conclui Costa.
Ela também aponta a necessidade de melhorar o contato direto entre pescadores artesanais e consumidores. “A maioria da produção do pescado artesanal é vendida a atravessadores, que compram os peixes com valor abaixo do mercado para revender”, afirma.
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Atualizado em 8/06/2022, às 14h46