Há aproximadamente cinco anos, viralizaram nas redes sociais imagens de jovens da periferia de Manaus (AM) lendo grandes clássicos da literatura e resumindo-os por meio de gírias. “A burocracia é a criação do sistema para atrasar os cria”, diziam sobre “O processo”, de Franz Kafka. “O maluco não perdoou a própria mãe”, resumiam sobre “Édipo”, de Sófocles.

As imagens ilustravam uma das iniciativas do projeto Funkeiros Cults, idealizado por Dayrel Teixeira, 25 anos, como forma de facilitar o acesso à arte pelos jovens de seu bairro, Compensa, na periferia manauara, historicamente marcado por guerras de facções.

“Os outros jovens olham as fotos e pensam: ‘Aquele mano se veste, fala como eu e lê’. É um bom contato ver seu semelhante fazendo algo, mostra minimamente que é possível você fazer também”, explica Teixeira. “Eu mesmo não conhecia um jovem que lia”, relata.

Em entrevista ao portal de cidadania do Instituto Claro, o idealizador explica o impacto do acesso aos livros nas favelas e como as artes podem mudar a perspectiva de jovens que vivem afastados dos grandes centros urbanos. Confira!

Instituto Claro: Como era a relação com as artes no bairro em que você vive?

Dayrel Teixeira: Eu moro no Compensa, bairro da periferia que também abriga pessoas indígenas e ribeirinhas. Assim como qualquer periferia de grandes cidades, ela está bem longe dos grandes centros. Tem gente que mora aqui que nunca saiu da periferia. Ninguém da minha família, por exemplo, havia visitado o Teatro Amazonas. A juventude se vira por aqui: os amigos, comidas, festas. 

Dentro da sua experiência, quais tipos de artes e manifestações artísticas chegam na periferia e quais ficam mais distantes?

Teixeira: A que mais chega é a música, se pensarmos que a periferia sempre esteve ligada à criação de sonoridades como rap, funk e o samba. Talvez por ser uma arte mais democrática: você não precisa de tinta ou de uma tela para criar, apenas de voz. Eu via chegando livros para doação, mas não conhecia nenhum jovem que lia, por exemplo. Pouco se via de fotografia e quadros. Quando você descobre todas essas artes, você vê que existem possibilidades. Descobre que existe um mundo além da favela. Desperta o desejo de querer conhecer mais e também de criar. 

Em qual momento você começou a acessar outras manifestações artísticas?

Teixeira: Eu já trabalhava ajudando a minha mãe vendendo coisas na feira. Com 19 anos, eu fui trabalhar no centro em uma universidade pública que tinha uma biblioteca. Eu era um faz tudo lá, limpava, arrumava datashow, e lá tive acesso a livros e frequentei espaços culturais. Foi quando percebi que não tinha essas coisas na periferia, bibliotecas bem montadas, eventos culturais ou de cinema, por exemplo. Você fica maravilhado, mas também inconformado.

Você sentiu discriminação ao acessar espaços artísticos no centro?

Teixeira: Você não se sente bem-vindo, é um sentimento de que aquele espaço não é para você. Você se sente mal vestido e é um sentimento real. Quando você chama crianças para irem à biblioteca, elas dizem que não têm roupa. É uma questão mais de autoestima, porque favelado tem calça, tênis e interesse em artes.  Na minha história, quando eu comecei a frequentar o centro, vi e ouvi pessoas me julgando pela minha roupa, pela música que eu ouvia. Que era exatamente a mesma que usava na periferia, e lá não chamava atenção. Diziam que eu era marginal, mal educado, sem conversar comigo, apenas pela roupa. Além disso, o que acontece é que a periferia não se sente incluída na programação desses espaços culturais e também precisa ser guiada, por que é como desbravar um mundo novo. Não sabemos nem como chegar, como entrar. 

O que pode aproximar jovens das periferias da literatura e artes visuais?

Teixeira: Falta ainda favelados e indígenas se verem nesses espaços culturais. Como vivemos em comunidade, ver um semelhante lendo, produzindo arte, expondo, estudando, dá um sentimento de que também podemos fazer isso. Não é apenas mostrar a arte, mas incentivar o jovem da periferia a produzi-la.  Por que há problemas sociais, o jovem que consegue terminar a escola vai precisar se sustentar, vai trabalhar de barbeiro, mototaxista, no exército. Ter a oportunidade de trabalhar com artes é um sonho muito distante. Ele não sabe, por exemplo, como ganhar dinheiro sendo fotógrafo. Por isso é importante ver nossas referências, lendo, escrevendo, pintando. Saber, por exemplo, que Machado de Assis foi um escritor negro, pobre e cria da favela (nascido no Morro do Livramento, no Rio de Janeiro) teria sido uma referência gigantesca para a minha geração. Eu tive sorte. Se eu não tivesse trabalhado em biblioteca, estaria condenado a nunca ter saído da minha periferia, não estaria trabalhando com artes.  

A linguagem da periferia e a identidade funk podem ajudar a aproximar jovens da literatura e das artes visuais? 

Teixeira: Com certeza, é o primeiro contato, é uma isca. Funk e rap são as melhores armas e conexões a serem traçadas com a periferia, assim podemos pegar parte delas. Por exemplo, fazemos as fotos do jovem da periferia lendo o livro e depois fazendo uma síntese da obra em formato de gíria. Os outros jovens pensam: ‘Aquele mano se veste, fala como eu e lê’. É um bom contato ver seu semelhante fazendo algo, mostra minimamente que é possível você fazer também. 

Como surgiu o Funkeiros Cults?

Teixeira: Quando trabalhava no centro, tinha o sentimento de que não queria mais ser olhado daquele jeito. Queria deixar uma mensagem de que favelado não é ignorante, que pode ler, pintar, só não teve acesso a isso. Pensei em funk, no nome Funkeiros Cults, porque era uma cultura bastante marginalizada naquela época. Até as pessoas do rap tinham preconceito com funk. 

Tudo isso despertou a vontade de criar o Funkeiros Cults, trazer para a minha periferia o que não tinha. Começamos trazendo livros, lendo com as crianças na praça.  O objetivo era trazer o centro para a periferia e levar a periferia para o centro. Começamos a usar as redes para tirar as fotos dos jovens lendo os livros e fazendo os resumos deles com gírias. Comecei a colocar amigos, meu irmão para fazer as fotos. Não era um manifesto e eu não sabia que seria algo tão grande, mas era uma brincadeira séria. Acho que havia muito favelado no Brasil com o mesmo sentimento, por isso o projeto cresceu rápido. 

Hoje, muitas pessoas no meu bairro vêm falar comigo que gostariam de escrever, gostariam de fotografar. Fomos criando e aprimorando o discurso de que a periferia pode e quer arte, só precisa de acesso.

Veja mais: 

Click na favela: a periferia pelas lentes de seus próprios moradores

Solidariedade e visibilidade melhoram inclusão de LGBTI+ em favelas e periferias

Crédito da imagem: divulgação – arquivo pessoal

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