Filha de uma dona de casa e um aposentado, a enfermeira Valéria Castro via o gasto com medicamentos abocanhar cada vez mais o orçamento familiar. “Além disso, sou enfermeira no Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) e acompanhava diariamente pessoas socorridas cujo problema seria evitado com acesso à medicação. Porém, elas precisavam priorizar o aluguel e a comida”, conta. Em 2016, Castro se viu sem dinheiro para arcar com uma medicação de alto custo não fornecida gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Ela criou, então, uma campanha nas redes sociais e recebeu mais do que seus pais necessitavam. O excedente foi encaminhado a outros pacientes. Nascia, assim, o embrião do projeto Remediar, farmácia solidária fundada por ela com sede em Belo Horizonte (MG).

“Mas atendemos outros lugares do Brasil. Já encaminhamos doações de medicamentos para pacientes de São Paulo, Rio Grande do Sul, entre outros estados”, orgulha-se. A iniciativa retira os remédios nas residências da Grande Belo Horizonte. Já a doação exige um pré-cadastro online com receita e receituário médico, para evitar automedicação ou que remédios caros sejam acessados por pessoas com desejo de revendê-los. “O desemprego e perda de renda na pandemia fez os pedidos dispararam”, revela.

farmácia solidária
Valéria Castro e voluntárias do projeto (crédito: acervo pessoal)

“Limbo jurídico”

Farmácia Solidária, Banco de Remédios e Banco de Medicamentos são alguns dos nomes para iniciativas como as criadas por Valéria Castro. “Elas beneficiam a sociedade, paciente e também o meio ambiente. O descarte dessas drogas é feito via lixo comum ou ralo, gerando poluição”, explica a ex-presidente da Comissão da Saúde Pública e Suplementar da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de Santana- São Paulo Claudia Rabello Nakano.

Leia também: Como descartar medicamentos corretamente?

“As sobras deveriam ser direcionadas aos postos de saúde, mas não raro esses as recusam. Isso ressalta a falta de políticas públicas e informação sobre o tema”, pontua.
Apesar dos benefícios, a doação de remédios vive um “limbo jurídico”, segundo a advogada. “A prática não é legal ou ilegal porque não há legislação federal sobre. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que poderia regularizar e fiscalizar, empurra a demanda para as Vigilâncias Sanitárias de cada estado”, explica. Em São Paulo, por exemplo, essa instituição contraindica a doação. “Alega que não há como garantir o armazenamento e a qualidade da medicação, o que é verdade, mas justamente porque não há regularização ou interesse na mesma”, observa.

“Regularizar permitiria que mais farmacêuticos avaliassem medicações que iriam para o lixo e ajudassem a direcioná-las a pacientes carentes. Sem ela, o direito constitucional à saúde é descumprido”. Estados como Rio Grande do Sul (RS) e municípios como Araraquara (SP) criaram legislações próprias para facilitar doações. “Ao contrário de doar por redes sociais, as instituições possuem profissionais para avaliar a qualidade e certificar o destino dessa droga”, explica Nakano, que colabora com o projeto Campanha dos Remédios. Há, ainda, medicações que não podem ser doadas, como líquidos, cremes e pomadas abertos. “Para doar ou receber medicamentos, procure a iniciativa no seu município ou região mais próxima”, recomenda a especialista.

Confira ainda: Apoio mútuo fortalece pessoas com doenças raras

Apoio de associações

Outra opção para portadores de doenças crônicas é contatar associações de pacientes em busca de doações. Foi o que aconteceu com Cleuza Pereira, de São Bernardo do Campo (SBC), que possui retocolite ulcerativa. Por não poder realizar uma colonoscopia via SUS devido à falta de anestésicos – direcionados ao tratamento da Covid-19 -, ela não conseguiu a documentação necessária para retirar gratuitamente o medicamento que precisava.

“Estou desempregada e tenho que tomar quatro comprimidos por dia, de modo que o tratamento corria o risco de ser descontinuado”, lembra. Pereira acionou a Associação de Pessoas com Doença de Crohn e Retocolite Ulcerativa (DII Brasil), que a colocou em contato com outro paciente. A medicação foi conseguida após ela comprovar a receita médica e o receituário. “A falta da medicação já ocorria antes da pandemia, mas agora está mais acentuada. E mesmo quando há a medicação, demora cerca de trintas dias para o paciente acessá-la”, relata a presidente da DII Brasil Patrícia Mendes Santos Quintiliano.

Veja mais:

SUS: quais as conquistas e desafios da saúde pública no país?

 

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