Em 2015, um grupo se juntou para comprar apartamentos ou adquiri-los em comodato para oferecer aluguéis 30% menores a famílias de baixa renda na cidade de São Paulo (SP). Nascia o Fundo Fica, com o objetivo de garantir moradia digna para trabalhadores das áreas centrais da cidade que não conseguem acessar o mercado imobiliário formal devido à especulação imobiliária e aos altos preços. Dessa forma, eles acabam em cortiços, barracos e ocupações, ou comprometendo mais de um terço da renda apenas com aluguel.

O projeto, que começou com um imóvel habitado por três pessoas, transformou-se após nove anos em 40 apartamentos onde vivem aproximadamente 90 moradores.

“Compramos, reformamos e alugamos o imóvel com um preço calculado para que o inquilino pague o mínimo e não seja explorado ao máximo, como acontece na lógica do mercado imobiliário tradicional”, descreve o professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP) e um dos fundadores da iniciativa Renato Cymbalista.

Os imóveis são adquiridos via doação e contribuições mensais de apoiadores, que não buscam lucro ou ganhar juros. “Os doadores recebem o retorno social de ver famílias morando bem e o centro da cidade reabilitado”, completa.

A iniciativa é inspirada em modelos semelhantes que já existem há mais de duas décadas em países como Alemanha, Suíça, França e Inglaterra. Com a diferença que, neles, políticas públicas unem governo e iniciativa privada em prol do direito à habitação.

“Quando estudante, morei em um imóvel de aluguel social na Alemanha. O governo reformou um edifício, e a família proprietária se comprometeu a praticar aluguéis com valor abaixo do de mercado durante dez anos”, exemplifica Cymbalista.

“São países capitalistas, mas que fizeram políticas públicas de habitação baseadas não na propriedade, mas no valor do aluguel e em parceria com setores sem fins lucrativos”, destaca a professora de arquitetura e urbanismo da PUC-Campinas e sócia fundadora do Fundo Haja, Vanessa Bello Figueiredo.

Combate à gentrificação e benefícios

Cymbalista explica que o aluguel solidário combate a gentrificação, quando moradores originais do local são expulsos devido ao aumento do custo de vida. Também evita que imóveis no centro fiquem vazios, tornando-a a área abandonada e mais violenta, assim como reduz o movimento diário de trabalhadores e estudantes entre o centro e as periferias. Para completar, ajuda a combater o problema do déficit habitacional no Brasil, que é a falta de moradias adequadas para atender à demanda de uma população.

Dados da Fundação João Pinheiro (FJP), instituição responsável pelo cálculo do déficit habitacional do país, apontam mais de 6,21 milhões de domicílios. Do outro lado, são estimados 11 milhões de imóveis vazios no país.

“Muitos imóveis fechados são patrimônios culturais que ficaram obsoletos em termos de desenho de planta e funcionalidade, mas continuam com preços altos. Porém, quem poderia pagar por eles prefere outros lugares da cidade ou modelos de moradia diferentes. E a população que precisa de moradia não consegue acessá-los devido ao valor pedido”, descreve Figueiredo.

“O resultado é que nem o mercado dá conta de resolver o problema e não há políticas públicas voltadas para imóveis vazios também”, acrescenta.

Captação de recursos é desafio

Iniciativa incubada pelo Fundo Fica, o Fundo Haja atua em Campinas (SP) e finaliza a reforma do primeiro imóvel adquirido – uma casa histórica que foi transformada em estúdios para quatro famílias chefiadas por mulheres.

“Elas são parte significativa do déficit habitacional: mulheres abandonadas pelos companheiros, com filhos, ficando sem metade da renda”, conta Figueiredo.

“O contrato de aluguel é de três anos, passível de renovação. As famílias pagarão um terço de salário mínimo com água, luz e IPTU incluídos. Caso desejem sair, não há multa”, adiciona.

Segundo Figueiredo, o primeiro desafio do projeto foi a captação de recursos, feito por doações. “O direito a habitação é o mais caro, porque você necessita comprar e fazer a obra”, justifica.

Para Cymbalista, quando o projeto iniciou, o desafio era ter escala. “Conseguimos passar em menos de uma década de um imóvel para 40, isso nos faz acreditar que conseguiremos expandir mais nos próximos anos. Também desenvolvemos um projeto que pode ser replicado por outras organizações, e oferecemos a elas nossos contratos e materiais”, destaca.

Necessidade de políticas públicas

Porém, ambos os docentes enfatizam que a falta de políticas públicas é o principal dificultador para os aluguéis solidários no Brasil.

Atualmente, os programas de municípios e estados chamados de “aluguel social” são um modelo que oferece auxílio financeiro temporário, destinado a famílias de baixa renda em situações de vulnerabilidade ou emergência habitacional. Os valores, porém, são muito mais baixos do que é praticado pelo mercado imobiliário.

“Uma analogia que mostra como um auxílio aluguel é ineficiente ocorre no benefício dado pelas universidades a estudantes de baixa renda. Como os proprietários do entorno aumentam os aluguéis, a universidade precisa reajustar o valor. Mas quando o faz, os mesmos proprietários entendem que há mais dinheiro em campo e aumentam os preços novamente. Ou seja, o auxílio aluguel é apropriado pelo mercado e será insuficiente enquanto o outro lado for composto e regulado por setores privados e especulativos”, analisa Cymbalista.

Figueiredo explica que as linhas de crédito de programas como “Minha Casa, Minha Vida” focam em terrenos e imóveis novos. “Ainda é necessário regulamentar a compra de usados para seu uso nesse modelo e desenhar linhas de crédito específicas”, explica.

Segundo ela, é possível usar instrumentos do plano diretor ‒ mecanismo legal que orienta a ocupação e desenvolvimento do território urbano das cidades ‒ para o município adquirir imóveis abandonados, o que não acontece. “Há no código civil brasileiro o instituto do abandono do bem imóvel urbano, que possibilitaria à municipalidade adquiri-los. Mas as prefeituras temem assumir a responsabilidade e a gestão destes”, argumenta Figueiredo.

“A simples troca de um telhado de um imóvel adquirido pode ser um labirinto de burocracia no poder público”, acrescenta.

“De modo geral, as políticas públicas não estão considerando a existência de proprietários sociais. Não aproveitam que estamos aqui”, lamenta o arquiteto. “Nossa atuação é uma forma de provocar o governo em todas as esferas a reagir”, finaliza Figueiredo.

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Crédito da imagem: arquivo pessoal – Vanessa Figueiredo | Fundo Haja

Atualizada em 10/06/2024, às 10h22.

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