Leonardo Valle
O aposentado Carlos Eduardo Alvim e a golden retriever Jade são uma dupla perfeita. Cego após ter uma doença degenerativa nos olhos, ele conta com a companheira como guia na rua.
“É uma relação forte de confiança, porque você entrega sua vida ao animal. Você se preocupa apenas em andar. Brinco que eu fico na cabine de comando e ela embaixo, indicando o destino para eu ir”, descreve ele, que está em seu segundo cão-guia.
Secretário executivo da Escola de Cães-Guias Helen Keller, em Balneário Camboriú (SC), Daniel Picoloto Bernardini também teve sua vida transformada. “É um divisor de águas, porque garante direito de ir e vir, qualidade de vida e interação social. Possibilitou uma autonomia grande. É o mais próximo de estar enxergando que vivenciei”, destaca ele, que é cego desde que nasceu.
“O cão resolve obstáculos e o problema de acessibilidade. Acabo nem sabendo o que ele encontrou na rua. É como se os desafios ficassem transparentes”, ressalta.
Treinamento árduo
A história dos cães-guias se iniciou no fim da Primeira Guerra Mundial, quando pastores alemães passaram a ser treinados, na Alemanha, para ajudar na reabilitação de soldados que ficaram cegos durante o conflito. Com o passar das décadas, a técnica passou a ser usada também para auxiliar civis em todo o mundo. Atualmente, são treinados principalmente labradores, golden retrievers e mestiços dessas raças.
O processo de encontrar e treinar um cão para ser guia, porém, está longe de ser simples. Tudo começa nas escolas, com o nascimento dos animais nas maternidades. A partir dos dois meses, eles são enviados para famílias socializadoras.
“Elas são responsáveis por apresentar a sociedade ao cão, levá-lo às ruas, viagem, banco, ao trabalho, literalmente incorporá-lo à sua rotina”, resume o gerente geral do Instituto Magnus, Thiago Pereira.
Aproximadamente aos 15 meses, o animal volta à escola, agora para um semestre de treinamento. Nesse momento, aprendem comandos para guiar, a desviar de obstáculos no solo e aéreos e a procurar faixas, rampas e locais de fácil acesso.
Nem todos os cães, contudo, conseguem “se formar” por questões de saúde e comportamento. 50% a 60% deles terão o perfil ideal para desempenhar a função. Os demais podem ser habilitados para trabalhar com autistas e pessoas com outros tipos de deficiência ou ter uma vida de pet comum.
Doação
Todo o processo é social. “Os cães são doados para os cegos e não há custos para eles”, esclarece Pereira.
Para isso, a pessoa com deficiência visual precisa se inscrever e aguardar em uma fila de espera, que pode ter de 400 a duas mil pessoas. Os custos para a formação do cão, que variam entre R$70 mil e R$100 mil, são cobertos por doações de pessoas físicas e patrocinadores das escolas, geralmente grandes empresas de rações e artigos para pets.
“Quando o cão é formado, é considerado seu perfil e o do receptor. São avaliados porte, altura, perfil psicológico e a velocidade que o animal e a pessoa que irá recebê-lo andam, pra ver se há compatibilidade”, explica Pereira.
Nem sempre o primeiro da fila será o primeiro a receber o cão-guia. “É preciso que haja um ‘casamento’ entre ambos”, sintetiza Bernardini.
Alvim descobriu o cão-guia ao ler sobre o assunto em uma revista. Demorou dois anos na fila antes de receber sua primeira amiga, a já aposentada Brida. “Selecionaram o cão com meu perfil e passei 15 dias com ele em um regime internato. Você convive com ele, dorme no mesmo quarto que ele, treina ao longo do dia, entre outros”, conta.
Já Bernardini, em um caso raro, teve o cão-guia de um amigo que faleceu readaptado a ele.
Aposentadoria
Após aproximadamente oito anos trabalhando, os cães são aposentados e se transformam em um pet comum. “Se o cego tiver condições de manter dois cães, pois provavelmente terá um segundo, ele permanecerá na mesma casa. Caso contrário, são encaminhados para parentes da pessoa ou a escola ajuda a encontrar uma família interessada em adotá-lo”, completa Bernadini.
Para pessoas com deficiência visual, há pré-requisitos para se ter um cão-guia, como estar adaptado à bengala e ter mobilidade. “A pessoa com deficiência pode fazer cursos de orientação espacial em instituições”, recomenda Alvim.
Já para o restante da população, Bernardini lembra que não se deve mexer com um cão-guia na rua, por meio de assobios, estalos ou mesmo carinho. “Ele está trabalhando e uma distração pode colocar sua vida e a do tutor em risco”, alerta.
Já Pereira ressalta a necessidade de se ter mais famílias socializadoras. “Para haver mais cães-guias habilitados, é preciso envolvimento de toda a sociedade.”
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