Leonardo Valle

Jornalista com diferentes especializações no campo do cinema e passagem pela Rede Globo, Daniel Gonçalves é uma pessoa com deficiência (PCD). Os sintomas motores apareceram quando ele era criança e, ainda hoje, não foram totalmente esclarecidos. Sua trajetória virou o documentário “Meu nome é Daniel”, que estreou em 17 de outubro de 2019. Dirigido por ele mesmo, o filme é o primeiro longa-metragem brasileiro dirigido por uma PCD.

“A deficiência é vista como algo ruim. Assim, quando uma pessoa com deficiência trabalha, namora, joga bola etc., ela passa a ser entendida como um herói ou exemplo de superação. Quando mais e mais pessoas com deficiência começam a contar as suas histórias, isso mostra que elas são comuns: não são aberrações, vítimas ou têm super poderes. Com isso, esses mitos deixam de fazer sentido”, aponta.

Qual a sua história?

Daniel Gonçalves: Com seis meses de idade, eu tive problemas gástricos e meus pais perceberam que havia algo errado comigo. O médico disse que poderia haver complicações na parte neurológica e motora, mas os exames foram inconclusivos. Até hoje não sei exatamente o que é. Embora não soubesse a causa, essa situação existia, então, comecei a fazer terapia para reabilitação, que faço até hoje.

Quando você começou a se entender como pessoa com deficiência?

Gonçalves: A percepção só veio mais tarde. Meus pais lidavam de uma outra forma com a situação, então demorei para perceber que era diferente. Na maioria das vezes, não me percebo diferente do outro – até hoje.  Quando estou na rua, me olham, mas aprendi a não enxergar esses olhares. Não me lembro de sofrer bullying no colégio. Lá, usava máquina de escrever para acompanhar as matérias, e não enxergava nisso uma desvantagem. Aos nove anos, durante umas férias, um casal me viu e disse “coitadinho”. Foi a primeira vez que revidei. Aos 19 anos, sai de Barra Mansa (RJ) e vim fazer faculdade no Rio de Janeiro (RJ). Comecei a ficar mais sozinho e a refletir mais sobre a condição de PCD.

Como surgiu a ideia de realizar um filme biográfico?

Gonçalves: Ela surgiu depois de um curta de três minutos que fiz para um concurso, que não ganhei. Falava como poderia ter sido a vida sem minha deficiência. Publiquei o vídeo no YouTube, e apenas com o compartilhamento de amigos, foram 30 mil visualizações. Pensei: “Acho que tem mais história para contar”. Então, comecei um projeto de financiamento colaborativo em 2015, com dois objetivos: levantar a grana para a produção e tornar o projeto conhecido. O Roberto Berliner viu e quis ser coprodutor. Submetemos a dois editais (Cine Rio e BNDS) e ganhamos.

Qual o seu objetivo com o filme?

Gonçalves: Queria contar a história do que aconteceu comigo e fazer um filme sobre uma pessoa com deficiência que não caísse em dois lugares comuns que somos colocados: o de vítima ou de heróis. Queria questionar isso. Mostrar que não somos uma coisa, nem outra. Que a deficiência é somente uma das minhas características, que tenho qualidades e defeitos independente dela. Também questionar essa construção sociocultural do que é ser “normal” e do que não é. Ajudar as pessoas a reverem seus preconceitos. Por fim, falar da importância da família e de privilégios. Fui privilegiado por ter uma determinada situação financeira, por ter tido uma família que lidou com a situação de uma forma diferenciada ou por ter tido a oportunidade de ter uma máquina de escrever durante o período escolar. Poderia não ter tido acesso a isso.

“É o primeiro longa dirigido por uma pessoa com deficiência no Brasil. Tem dado voz e pode dar mais ainda a outras pessoas”, diz Daniel (crédito: divulgação)

 

O que você aprendeu durante o processo de realização?

Gonçalves: Fazer um longa-metragem pessoal tem algumas particularidades. Tinha muitos arquivos de vídeo, e alguns tocavam em situações difíceis. Foi preciso resgatar memórias do que vivi. Entrevistei meus pais e outras pessoas que ajudaram a entender melhor a minha trajetória. O processo de edição foi uma imersão muito intensa: ficamos seis meses, todos os dias da semana, trabalhando. O que mudou é que não somente amadureci como profissional como entendi a importância do filme para as pessoas com deficiência, pela representatividade. Sou uma PCD contando a própria trajetória. É o primeiro longa dirigido por uma pessoa com deficiência no Brasil. Tem dado voz e pode dar mais ainda a outras pessoas. Podem pensar: “se ele conseguiu, eu também posso”.

Em quais aspectos as pessoas precisam ser educadas sobre o tema?

Gonçalves: Eu canso de ouvir, por exemplo, coisas como “você é um exemplo de superação”, “quando fico triste, me lembro de você” ou “não fico triste porque você não é”. Ou ver posts nas redes sociais com a imagem de uma pessoa amputada correndo, com dizeres “qual sua desculpa para não correr hoje?”. Não acho que as pessoas fazem por mal, mas dizem sem pensar. O que está por trás disso é que a deficiência é vista como algo muito ruim. Então, quando uma pessoa com deficiência trabalha, namora, joga bola e etc., ela é entendida como herói ou exemplo de superação. Afinal, “a situação dela é tão horrível”. Quando mais e mais PCDs começam a contar a sua história, isso mostra que elas são comuns: não são aberrações, vítimas ou heróis. Com isso, esses mitos deixam de fazer sentido.

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Crédito da imagem principal: divulgação

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