Modelos de publicidades, protagonistas de novela e influencers digitais têm geralmente o mesmo biotipo magro e sem deficiência aparente. Quem não se encaixa no perfil pode sofrer pressão social para se enquadrar ou situações de preconceito — caso da gordofobia. “Sem representatividade na mídia, o gordo pensa que a vida só começa quando emagrecer. Até lá, não tem direito ao sucesso profissional, a ser amado ou constituir família”, resume a atriz paulistana Carolina Victor. Contra isso, surgiu nas redes sociais o movimento body positive (corpo positivo, em tradução literal do inglês), também conhecido no Brasil como “corpo livre”. Os adeptos postam fotos sem mascarar o que é socialmente considerado ‘defeito’, como excesso de peso, celulites, deficiências e cicatrizes.
“As histórias na televisão focam em pessoas rejeitadas por serem gordas e querendo emagrecer. Já nas redes sociais, vemos que pessoas reais trabalham, viajam, namoram”, resume a atriz. Para a jornalista Jéssica Balbino, o body positive desmistifica a relação do gordo com o sofrimento. “A aceitação tem altos e baixos, mas inicia ao entender que o problema é uma sociedade que rejeita a diversidade, não seu corpo”, pontua.
Representatividade e pessoas reais
Encontrar modelos de identificação é mais difícil para mulheres negras, como conta a carioca Jasmine Medeiros. “Descobri primeiro as influencers plus size e gordas brancas. Sem representatividade, você não reflete, fala e age contra o problema”, sintetiza.
Além de encontrar pessoas iguais, outra medida no body positive é deixar de seguir influencers com discursos que podem se tornar opressores. “Sou gorda desde pequena. Via-me seguindo musas fitness com corpos que nunca terei e que chamavam de ‘gordice’ comer um doce. Eu me sentia inadequada”, diz Victor, que passou a infância e a adolescência fazendo dietas. A cantora Maira Garrido também orienta a “limpar” o feed para evitar se comparar com imagens, geralmente, irreais. “Acessamos fotos com filtro e vidas falsas. Afastar-se disso traz felicidade”, garante.
Sem medo de postar
Postar fotos também traz liberdade, como aponta a militante gorda e transgênera mineira Rafaella Duarte. “Fiz as primeiras postagens temerosa, mas as redes são hoje um lugar onde posso existir”, conta. Idealizadora de uma feira de roupas plus size, a Feira Pop Plus, Flavia Durante se inibia para postar fotos, ainda que levasse o body positive de forma ativa para o seu cotidiano. “Hoje, se gostei de uma foto, eu posto. É uma autoimagem reconstruída com ajuda da internet e de outras mulheres”, observa.
Sobrevivente de uma anorexia quando adolescente, o empresário Diego Braga também mudou sua interação online.
“Quando penso que estou inadequado na foto, lembro que aquele é um registro com pessoas que amo e que estou vivo”, relata. Pelas redes, ele também descobre e compartilha dicas. Como uma postada pela cantora norte-americana e referência em body positive Lizzo. “No espelho, ela olha, conversa e agradece pela função das partes do corpo que costumava rejeitar. Isso me ajudou”, assinala.
Ataques de ódio, porém, podem surgir nos comentários – o chamado body shamming (ridicularização do corpo, em inglês). Nesses casos, a orientação é se afastar das redes por um tempo. “Não entro em todas as brigas e provocações”, diz Durante.
Adoecimento coletivo
Entender o body positive exige lembrar que padrões de beleza são culturais. “No passado, gordura era sinônimo de ausência de miséria e era valorizada”, contrapõe a psicanalista e coordenadora do Núcleo de Doenças da Beleza da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) Joana Vilhena Novaes.
Questões econômicas, porém, perpassam a atual valorização do corpo magro e jovem. “Promover o sentimento de inadequação das pessoas com seus corpos é interessante ao sistema, pois serão oferecidos produtos e serviços a serem consumidos contra isso. Tanta oferta gera uma sensação de culpa e de estarmos ‘em dívida’”, analisa. “Por sua vez, há o discurso de que você não precisa conviver com um ‘defeito’”.
Para completar, ela acredita que há um discurso corrente que associa beleza e caráter. “O estigma do gordo é moral, não estético. Ele é visto como fraco por não se empenhar, afinal, o mercado oferece possibilidades a serem consumidas. Vende-se o discurso de que só não emagrece quem não se empenha, independente do biotipo”, completa. “Ao final, todos esses fatores juntos promovem um solo fértil para o adoecimento coletivo”.
Desumanização
Por ser um problema coletivo, Albino acredita que o body positive é somente um passo. “Amar-me como sou não me protege de sair na rua e sofrer violência. O caminho passa por políticas públicas e rever o discurso médico que associa o corpo gordo a doença. Isso nos desumaniza”, opina.
“Nem todo gordo é doente, como nem todo magro é saudável”, reforça Carolina Victor. Para a atriz, a gordofobia na medicina faz com que o body positive seja criticado por “romantizar a obesidade”. “Mas, na prática, o que vemos nas redes sociais é o gordo mostrando apenas que está vivendo”, conclui.
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