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A tradição da Portela de criar sambas-enredo com base em obras literárias tem início em 1966, quando a escola levou para a Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro, uma composição inspirada no livro “Memórias de um Sargento de Milícias”, de Manoel Antônio de Almeida.

Em 2024, a escolha da azul e branco carioca recai sobre um clássico da literatura contemporânea, “Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves, lançado em 2006.

“Significa ficcionalmente trazer para o público brasileiro que a história da população negra brasileira não começa nos navios escravagistas, ela é anterior a isso. Foi um erro de rota para que essas pessoas chegassem aqui. Agora todo mundo tinha vida, tinha história, tinha família, tinha afeto do outro lado. Não por acaso ela [Portela] começa essa saga dessa mulher a partir do território africano”, explica a professora de literatura da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) Fernanda Felisberto.

A perspectiva feminina para o período da escravidão é um dos pontos fortes do livro que conta a saga de Kehinde. Chamada no Brasil de Luísa Mahin, ela foi “laçada” aos oito anos de idade em Daomé, na África, e colocada em um navio negreiro com a irmã gêmea e a avó para serem escravizadas no Brasil.

No enredo da Portela, Kehinde recebe uma carta do filho Luís Gama, na qual o advogado, jornalista e patrono da abolição da escravidão no Brasil valoriza o legado deixado pela mãe narrado no livro.

“Quando ela chega aqui no Brasil, ela é recepcionada por outras mulheres, e são essas mulheres que, dentro da saga da Kehinde, também vão apresentá-la à espiritualidade. É como a Kehinde acaba resgatando sua ancestralidade através da sua reconexão com a espiritualidade”, conta o carnavalesco da Portela André Rodrigues.

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          Fantasia do carnaval da Portela representando Luísa Mahin (crédito: divulgação)

“Como essa mulher forte e empoderada e movimentando outras mulheres, movimentando a sociedade e articulando algumas revoltas importantes para a busca da liberdade do povo preto no Brasil. Então, a gente propõe uma coroação a essa mulher como essa rainha das revoltas, que participou da Revolta dos Malês, participou da Cemiterada e era alguém que sonhava com um país mais justo e com o seu povo mais livre”, completa o também carnavalesco da Portela Antônio Gonzaga.

Direito à memória

Para Fernanda Felisberto, que pesquisa as experiências de escrita de autoria negra brasileira e a diáspora africana, a importância de levar um enredo baseado no livro “Um defeito de cor” é garantir o direito à memória.

“Teve dor, teve subtração, violência, tortura, mas também teve resistência. Teve luta, teve formação de uma nação. Esse livro rasura a história oficial, porque esse livro vem trazendo a participação negra ativa, as maneiras de organização, as maneiras de professar sua fé, tudo isso daí é o direito à memória. Se a gente tem memória, ninguém vai contar para nós como nós somos, o que somos”, analisa Felisberto.

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Transcrição do Áudio

Música: Remix da introdução do samba-enredo “Um Defeito de cor” da Portela (Composição: Rafael Gigante / Vinicius Ferreira / Wanderley Monteiro / Jefferson Oliveira / Hélio Porto / Bira / André Do Posto 7) fica de fundo

Antônio Gonzaga:

A Portela vai levar para avenida em 2024, o enredo “Um defeito de cor”, baseado na obra de Ana Maria Gonçalves, e a gente propõe um ponto de vista do Luiz Gama contando a narrativa da história de Kehinde, essa grande heroína da história brasileira.

André Rodrigues:

O nosso enredo fala muito sobre afeto entre mãe e filho, entre filho e mãe, e a gente procura um pouco exaltar toda a saga dessa personagem tão incrível que vem da Ana Maria, né? Que é uma história fictícia e a gente acaba desenvolvendo também uma ficção em cima dessa história fictícia.

André e Antônio:

Oi, eu sou André. Eu sou o Antônio, nós somos os carnavalescos da Portela e nós viemos aqui falar um pouquinho sobre o Carnaval 2024.

Fernanda Felisberto:

Vamos imaginar que na maior festa popular da Terra vai estar cantando esse enredo. Isso significa, antes de qualquer coisa, também a internacionalização da nossa literatura sendo cantada em verso e prosa por várias pessoas. Isso é muito importante.

Olá, meu nome é Fernanda Felisberto, professora de literatura na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

Vinheta: Instituto Claro – Cidadania

Música: African Drums (Sting), de Twin Mucicom, fica de fundo

Marcelo Abud:

No carnaval de 2024, a centenária escola carioca Portela leva para a Marquês de Sapucaí uma releitura de “Um defeito de cor”.

A obra de Ana Maria Gonçalves traz uma perspectiva feminina para a história da escravidão ao acompanhar a saga da mãe do poeta e abolicionista Luís Gama. “Um defeito de cor” foi lançado em 2006 e já é considerado um clássico da literatura contemporânea.

Fernanda Felisberto:

Essa obra é um dos grandes marcos da literatura negro-brasileira e da literatura brasileira. Além de todo o trabalho ficcional que acontece nessa obra, tem toda uma pesquisa histórica, que ela é referenciada com documentos – se você olhar o final do livro, ele tem referências das fontes que a autora pesquisou –, mas, sobretudo, o que significa ficcionalmente trazer para o público brasileiro que a história da população negra brasileira ela não começa nos navios escravagistas. Ela é anterior a isso. Foi um erro de rota para que essas pessoas chegassem aqui. Agora todo mundo tinha vida, tinha história, tinha família, tinha afeto do outro lado. Não por acaso ela começa essa saga dessa mulher a partir do território africano.

Samba-enredo “Um defeito de cor”, da Portela:

Salve a Lua de Benim

Viva o povo de Benguela

Essa luz que brilha em mim

E habita a Portela

Tal a história de Mahin

Liberdade se rebela

Nasci quilombo e cresci favela

André Rodrigues:

Justamente o que justifica o título do enredo e o título do livro “Um defeito de cor” fala sobre o desencontro de mãe e filho a partir do momento em que o filho foi vendido pelo próprio pai quando ainda era criança. Então os dois são separados, e a Kehinde, apesar de ser essa mulher tão singular e uma mulher de várias facetas que acaba passando por vários outros casos durante a sua trajetória, se vê numa situação de buscar o seu próprio filho.

Marcelo Abud:

Fernanda Felisberto tem como foco de pesquisa as experiências de escrita de autoria negra brasileira e a diáspora africana. Ela cita o pensamento de Nilma Lino Gomes, no livro “Movimento Negro Educador”, para explicar a importância dessa história da escravidão negra no Brasil do século XIX ser contada e cantada no carnaval. Para a professora, o samba-enredo da Portela preenche uma lacuna deixada pela educação escolar.

Fernanda Felisberto:

O hiato que a escola brasileira deixa, o movimento social, ele repõe. E aí ele vai devolver para a sociedade de várias formas de arte. E o carnaval é a grande arte popular.

Nada mais justo que a gente ter uma obra como essa, trazendo uma saga de uma família negra para a avenida, num bairro absolutamente negro da zona norte do Rio de Janeiro, que é Madureira, lugar onde a Portela está. Lugar onde tem aí um conjunto de sambistas que foram extremamente preocupados com as relações raciais e com o debate do como essa escola de samba também é educadora. Eu acho que uma saga dessa desmistifica essa questão de que o brasileiro não se interessa pelas coisas do seu passado.

Marcelo Abud:

No enredo da Portela, Kehinde recebe uma carta do filho Luís Gama. Nela, o patrono da abolição da escravidão no Brasil valoriza o legado deixado pela mãe, narrado no livro.

André Rodrigues:

Como Luís Gama via todos os relatos da Kehinde no Benin, a relação dela com a avó, com a mãe e com a própria irmã Taiwo. E como elas foram expulsas de sua terra natal.

Antônio Gonzaga:

Ele fala um pouco sobre a travessia, sobre esse medo de enfrentar esse grande Atlântico negro…

André Rodrigues:

Durante essa saga, ela vai encontrando muitas outras mulheres, né? Por isso que o samba diz “A mão que acolhe a outra mão”. Então quando ela chega aqui no Brasil, ela é recepcionada por outras mulheres, e são essas mulheres que, dentro da saga da Kehinde, também vão apresentá-la à espiritualidade. É como a Kehinde acaba resgatando sua ancestralidade através da sua reconexão com a espiritualidade.

Samba-enredo “Um defeito de cor”, da Portela:

Saravá, Kehinde

Teu nome vive

Teu povo é livre

Teu filho venceu, mulher

Em cada um de nós

Derrame seu axé

Antônio Gonzaga:

Como essa mulher forte e empoderada e movimentando outras mulheres, movimentando a sociedade e articulando algumas revoltas importantes para a busca da liberdade do povo preto no Brasil. Então, a gente propõe uma coroação a essa mulher como essa rainha das revoltas, que participou da Revolta dos Malês, participou da Cemiterada e era alguém que sonhava com um país mais justo e com o seu povo mais livre.

Fernanda Felisberto:

Não é à toa hoje uma reconstrução da gente para falar de escravizado, ou seja, ninguém nasce escravo, as pessoas são escravizadas.

Eu acho que esse livro é um direito à memória com dignidade. Teve dor, teve subtração, violência, tortura, mas também teve resistência. Teve luta, teve formação de uma nação. Esse livro rasura a história oficial, porque esse livro vem trazendo a participação negra ativa, as maneiras de organização, as maneiras de professar sua fé, tudo isso daí é o direito à memória.

Se a gente tem memória, ninguém vai contar para nós como nós somos, o que somos. A gente tem a certeza do lugar de onde a gente partiu, mas se a gente olha para trás, está uma folha em branco, qualquer um pode escrever qualquer coisa sobre nós. E eu acho importante o direito à memória, principalmente nessa voz narradora, feminina, de toda essa história.

Samba-enredo “Um defeito de cor”, da Portela:

Alma de Jeje e a justiça de Xangô

O teu exemplo me faz vencedor

André Rodrigues:

Então o desfile da Portela termina com esse grande carinho, com esse grande abraço a todas as mulheres que perderam os seus filhos e tenta fazer uma conexão entre elas e a própria Kehinde, que hoje, né, a gente conhece como Luísa Mahin e que é símbolo da nação, né, é uma personagem que está nos heróis da pátria, então a gente quer dizer que todas essas mulheres são um pouco Luísa Mahin, todas essas mulheres são um pouco Kehinde e todas elas são um pouco heroínas dessa pátria.

Música: Remix da Introdução do samba-enredo “Um Defeito de cor” da Portela (Composição: Rafael Gigante / Vinicius Ferreira / Wanderley Monteiro / Jefferson Oliveira / Hélio Porto / Bira / André Do Posto 7) fica de fundo

Marcelo Abud:

Fernanda Felisberto afirma que o samba baseado no livro “Um defeito de cor” segue a tradição do carnaval de trazer um ponto de vista diferente daquele da história que, normalmente, se aprende na escola.

Nesse sentido, o enredo da Portela mostra o protagonismo da população negra com suas formas de organização e de participação ativa na luta abolicionista do século XIX e antirracista dos dias de hoje.

Marcelo Abud para o podcast de cidadania do Instituto Claro.

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