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A herança colonial corresponde às estruturas criadas no momento de grandes navegações e invasões. Essa perspectiva de que há pessoas que têm mais valor do que outras — e, também, sobre os não-humanos — permanece naturalizada em muitas sociedades e afeta vidas e relações ainda hoje, não apenas no Brasil, mas em outros territórios, como os continentes africanos e asiáticos. 

“Ali se inaugurou uma nova forma de viver se formos comparar com a maneira anterior; de viver e de se relacionar em sociedade. O Malcom Ferdinand que diz que naquele momento das grandes navegações e das invasões desses territórios, se inaugurou uma forma de habitar que a gente ainda não teve oportunidade de desconstruir”, afirma o escritor, geógrafo e doutor em estudos étnicos e africanos pela Universidade Federal da Bahia, Itamar Vieira Junior. 

Desde o premiado romance de estreia “Torto Arado”, o escritor obtém destaque por tratar do universo rural brasileiro e da luta de personagens femininas contra a violência que caracteriza a sociedade patriarcal. Em “Salvar o Fogo”, lançado em abril deste ano, vai além e traz como pano de fundo a insubordinação social e os traços da vida emocional e cultural do povo brasileiro.

“Há muitas pessoas que estão contando suas histórias a partir de suas perspectivas, não para dividir, mas para agregar, para mostrar que há uma maneira diferente de viver. Com certeza, menos predatória, menos tóxica do que as estruturas que nos moldam e conformam hoje”, diz.

Itamar Vieira Junior: por que é preciso lutar contra o colonialismo em pleno século XXI?
Obra de Itamar Vieira Junior denuncia traumas do colonialismo (Crédito: ©Renato Parada / Todavia).

Luta contracolonial

A obra do escritor denuncia os traumas do colonialismo que permanecem vivos e são facilmente percebidos no dia a dia. “O Brasil foi um país onde o sistema escravagista perdurou por mais de três séculos e, naquele momento, se inaugurou um ranking de vida e valor que ainda não foi derrubado. Na nossa sociedade há vidas que valem mais, há vidas que valem menos, por esse parâmetro. Então, se a gente almeja um país para todos, uma democracia para todos, a gente precisa conhecer para desconstruir as estruturas coloniais que ainda permanecem entre nós”.

Diante desses fantasmas do passado que ainda assombram nosso cotidiano, Itamar defende que é preciso que se busque o conhecimento da nossa realidade e de outras formas de se habitar o mundo e que isso deve gerar mais do que uma atitude anticolonial. 

“Você pode se posicionar ‘anti’, mas não necessariamente você estará engajado nessa luta. No contracolonial, a palavra já nos coloca numa posição contrária, trazendo também em nosso pensamento uma solução para isso: de que maneira vamos reagir a tudo isso? O que virá depois do colonialismo, né? O que são essas perspectivas contracoloniais? Significa um movimento que está levando um pensamento outro para poder desconstruir tudo isso”, conclui.

Links:

O que é florestania? – Entenda o conceito de vida cidadã dentro da floresta 

O que é contracolonial e qual a diferença em relação ao pensamento decolonial?

Transcrição do Áudio

Música: Introdução de “O Futuro que me Alcance”, de Reynaldo Bessa, fica de fundo

Itamar Vieira Junior:

O melhor tempo que nós vivemos é o nosso! Há muitas pessoas que estão contando suas histórias a partir de suas perspectivas, não para dividir, mas para agregar, para mostrar que há uma maneira diferente de viver. Com certeza, menos predatória, menos tóxica do que as estruturas que nos moldam e conformam hoje.

Eu tenho muita esperança que essa causa, que essa consciência envolva muitas pessoas. Eu acho que não há saída para toda a crise que afundamos se a gente, de fato, não refundar a nossa maneira de ver o mundo, nossa maneira de viver, de atravessá-lo, de viver sobre ele, né?

Eu sou Itamar Rangel Vieira Junior, escritor, sou geógrafo de formação também, doutor em estudos étnicos e africanos pela Universidade Federal da Bahia, servidor público, mas eu gostaria de ser definido como escritor e leitor. 

Vinheta: Instituto Claro – Cidadania

Música instrumental de Reynaldo Bessa fica de fundo

Marcelo Abud:

No romance de estreia ‘Torto Arado’, Itamar Vieira Junior narra a saga de personagens femininas que lutam contra a sociedade patriarcal em um ambiente rural. Já em ‘Salvar o Fogo’, recentemente lançado, os fantasmas do passado de uma família se confundem com os traumas do colonialismo que permanecem vivos. Nesta entrevista, o premiado escritor fala por que, em pleno século 21, ainda é preciso lutar contra a herança colonial. 

Itamar Vieira Junior:

Quando a gente fala de herança colonial, estamos falando de estruturas que permanecem entre nós e que, de alguma maneira, afeta nossas vidas, nossas relações sociais ainda hoje. Esse evento foi um evento muito importante que trouxe um grande trauma não só para o nosso continente, mas para outros territórios, continente africano, continente asiático. 

E ali se inaugurou uma nova forma de viver se formos comparar com a maneira anterior; de viver e de se relacionar em sociedade. O Malcom Ferdinand que diz que naquele momento das grandes navegações e das invasões desses territórios, se inaugurou uma forma de habitar que a gente ainda não teve oportunidade de desconstruir. Essa maneira de habitar o mundo predatória, que tem nos levado a uma crise muito evidente, a crise climática, mas a gente não pode pensar essa crise também sem pensar na interseccionalidade entre classe social, raça, tudo isso mostra quem está mais vulnerável, né?

Marcelo Abud:

Essa herança colonial ainda reverbera na sociedade brasileira dos dias de hoje.

Itamar Vieira Junior:

O Brasil foi um país onde o sistema escravagista perdurou por mais de três séculos e, naquele momento, se inaugurou um ranking de vida e valor que ainda não foi derrubado. Na nossa sociedade há vidas que valem mais, há vidas que valem menos, por esse parâmetro. 

Então, se a gente almeja um país para todos, uma democracia para todos, a gente precisa conhecer para desconstruir as estruturas coloniais que ainda permanecem entre nós. 

Marcelo Abud:

Diante desses fantasmas do passado que permanecem assombrando nosso cotidiano, Itamar defende que mais do que anticolonialista, é preciso que se tenha uma atitude contracolonial. 

Itamar Vieira Junior:

Anticolonial não necessariamente você está em movimento conta aquilo. Você pode se posicionar anti, mas não necessariamente você estará engajado nessa luta. 

Contracolonial, a palavra já nos coloca numa posição contrária, trazendo também em nosso pensamento uma solução para isso: de que maneira vamos reagir a tudo isso? O que que virá depois do colonialismo, né? O que são essas perspectivas contracoloniais. Significa um movimento que está levando um pensamento outro para poder desconstruir tudo isso. 

Marcelo Abud: 

Os livros de Itamar Vieira Junior trazem um pensamento contracolonial a partir da insubordinação social e da apresentação de outros modos de viver. 

 Itamar Vieira Junior:

É importante que a gente se insurja contra essa forma de habitar o mundo, porque simplesmente ela nos dividiu, promoveu entre nós algo que o Malcom Ferdinand chama de ‘altericídio’ – isso é muito perigoso, né? – é a incapacidade de conviver, de coexistir com os diferentes. Então isso foi introjetado naquele momento: o genocídio indígena no continente americano, a escravidão dos corpos africanos nesse território, ou seja, para a gente coexistir com o diferente ou a gente precisou matar ou a gente precisou desumanizar.

E essas estruturas ainda permanecem entre nós, senão não estaríamos falando de racismo, de genocídio indígena ainda nos nossos dias. E para que a gente possa projetar um presente e um futuro diferente do que nós tivemos, a gente precisa desconstruir isso, porque não há vida, não há salvação para nós, para a humanidade nem para o planeta dentro das estruturas coloniais. A gente precisa colocá-las abaixo para poder refundar uma nova maneira de viver. 

Marcelo Abud:

O escritor defende a leitura e o contato com outras artes como uma forma de conhecer melhor a herança colonial e as diferentes maneiras de se viver que se opõem essa estrutura. 

Itamar Vieira Junior:

As comunidades quilombolas são um exemplo disso e elas perduram, persistem até hoje. O Brasil tem mais de três mil comunidades quilombolas. E não existem só no Brasil, existem em todo o continente americano, principalmente na América Latina. Ou seja, eles iam para fora desse mundo colonial de opressão para refundar a sua relação com o trabalho, com o outro, com a terra, com o planeta. Não por acaso também encontrávamos pessoas brancas nesses quilombos, porque elas eram aliadas e terminavam indo para lá, eram acolhidas… ou seja, era um espaço democrático de uma nova experiência, de uma nova forma de habitar o mundo.

Então que a gente deixe esse habitar colonial de lado e vai levar muitas gerações para a gente desconstrui-lo ainda, mas a gente precisa conhecer, para a gente, quem sabe, habitar o mundo a partir de perspectivas indígenas, mestiças, negra, que podem permitir que a gente habite esse mundo de uma maneira mais equânime, com respeito a nós, aos não-humanos, à natureza. 

Marcelo Abud:

Até aqui ouvimos o escritor, agora o leitor traz uma dica de livro que considera importante para que se conheça outros modos de viver. 

Itamar Vieira Junior:

É muito importante que a gente escute, observe e aprenda com esses saberes que foram tidos, por essa colonialidade eurocêntrica, como inferiores. Eu tenho muito interesse nesse tema e há muito tempo eu já me educo nesse tema, mas eu vou destacar um livro em especial, eu estou pensando em ‘A Queda do Céu’, Davi Kopenawa e do Bruce Albert. É um livro que para ficar pronto levou mais de 30 anos e carrega toda uma vida de uma sociedade, que é a sociedade Yanomami e sua maneira muito particular, muito peculiar de olhar para o mundo, para os desafios da humanidade, para os problemas. Um mar de conhecimento que foi soterrado pela violência racista da colonialidade e a gente precisa resgatar tudo isso para conhecer e para projetar uma maneira diferente de viver, de se relacionar com o outro, de viver com outro, de transitar neste mundo, neste território. 

Música instrumental de Reynaldo Bessa fica de fundo

Marcelo Abud:

O lugar de subalternidade que as sociedades indígenas e afro-brasileiras ainda ocupam dentro da sociedade aos poucos tem sido desconstruído. A partir da arte, do conhecimento acadêmico e da sabedoria popular, Itamar Vieira Junior acredita que é possível, de fato, que se construa um mundo diferente e democrático para todas as pessoas. 

Marcelo Abud para o podcast de cidadania do Instituto Claro. 

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