Em pesquisa na rede municipal de São Paulo, a doutoranda em educação pela Universidade de São Paulo (USP) Janaina Gondin identificou que estudantes bolivianos eram estigmatizados e sentiam dificuldade em expressar o que estavam vivenciando. Assim, fechavam-se em grupos de compatriotas.
“Diziam ser incompreendidos por não falarem português e que costumavam sofrer bullying por conta dos seus cabelos – que algumas crianças brasileiras diziam ter piolhos – pelo idioma e condições financeiras, associadas à pobreza e ao trabalho precário”, descreve.
Observação semelhante à do docente do Instituto de Psicologia da USP Lineu Norio Kohatsu.
“Nos anos iniciais do fundamental, observei interações espontâneas e amistosas entre bolivianos e brasileiros. Nos anos finais e no ensino médio, bolivianos tendiam a se isolar, ainda que outros interagissem com colegas brasileiros”, relata. “Ouvimos relatos de comportamentos xenófobos, insultos e bullying contra eles. Alguns chegavam a mudar de escola”, acrescenta.
Entendendo os estigmas
Aparência e condição social estão na origem dos estigmas, como aponta Gondin. “Por conta dos seus traços fenotípicos, são identificados como indígenas e sofrem com o preconceito que existe no Brasil contra povos originários”, afirma.
“Mesmo descendentes de bolivianos nascidos no Brasil são vistos como estrangeiros, recebendo apelidos como ‘boliva’ e ‘bola’”, descreve o sociólogo e professor do Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG -São João Evangelista) Fabio Pucci.
Já em relação à questão social, bolivianos são associados à exploração das oficinas de costura.
“As crianças bolivianas são vistas como ’coitadas’, já que seus pais seriam explorados, mesmo quando tinham profissões sem ligação com costura. Ou seja, pressupõe-se que todos vivem da mesma forma pelo simples fato de serem bolivianos”, alerta Gondin.
Problemas de comunicação
Outra dificuldade observada é a barreira linguística. “Equipe escolar e professores geralmente não falam uma segunda língua e isso se torna um dificultador logo na matrícula, quando as famílias bolivianas não conseguem esclarecer dúvidas ou entender instruções”, pontua Gondin.
No dia a dia, os estudantes não conseguem acompanhar as aulas, e famílias não entendem comunicados escolares e informações transmitidas nas reuniões de pais.
“Aliado a isso, há o comportamento de alguns educadores e funcionários que acreditam que quem está chegando ‘é que deve se adaptar ao novo país’, que todo o esforço deve vir dos educandos bolivianos e suas famílias. Dessa forma, não buscam alternativas ou propõem abordagens para facilitar o processo comunicacional e garantir o direito à aprendizagem desse aluno”, alerta Gondin.
Confira, a seguir, oito orientações de professores e psicólogos para garantir um bom acolhimento de alunos bolivianos e suas famílias pela escola.
1) Timidez e ‘bom comportamento’ podem ocultar exclusão
Kohatsu explica que há um senso comum de que alunos bolivianos são tímidos, quietos e estudiosos. “De fato, há estudantes com esse perfil, mas a conduta de professores e colegas pode estimular ou inibir a interação, e o comportamento varia conforme o ambiente”, enfatiza. “Eles podem se mostrar quietos em aulas que exigem maior domínio da língua portuguesa e mais extrovertidos na educação física e no intervalo”, exemplifica
“O silêncio, muitas vezes, revela exclusão. É comum que esses alunos se isolem ou sejam isolados e isso passe despercebido pelo professor”, acrescenta Gondin.
“Para o professor que está sobrecarregado, o aluno boliviano quieto é visto como algo benéfico, não como um problema”, lembra Pucci.
2) Orientações e documentos em espanhol
Segundo Gondin, a equipe da escola deve auxiliar a família boliviana com orientações sobre documentação, uniforme e material escolar por meio de documentos e fichas em espanhol. “Além disso, é necessária uma reunião para entender se esse aluno já estudou em outra escola brasileira, o quanto estudou antes de chegar à unidade atual etc.”, complementa.
3) Aulas de português no contraturno
Para Gondin, é importante a escola manter projetos de ensino de português no contraturno para servir de suporte e apoio a esses estudantes, ou indicar cursos gratuitos para isso. “A língua ainda é uma das principais barreiras à escolarização”, lamenta Kohatsu.
4) Não naturalize bullying e xenofobia
Ao entrevistar diretores de escola com maioria boliviana, Pucci identificou falas de naturalização do bullying e racismo.
“Nesta escola não tem preconceito por eles serem bolivianos. Eu tenho coisa de criança, independente de raça, que se bate, fala que está brincando”, disse uma diretora de escola pública no Bom Retiro.
“As escolas não estão isoladas da sociedade; assim, em tempos em que a intolerância é estimulada por autoridades públicas, esse clima de xenofobia pode ser reproduzido em ambiente escolar”, lembra Kohatsu.
5) Atente-se a estereótipos
Pucci lembra que nem todos os bolivianos vêm de famílias exploradas ou em situação de miséria, estereótipos que podem ser reproduzidos pelo corpo docente.
“Conheça cada aluno, saiba de onde ele vem, classe social, condição étnica e racial, entre outros”, afirma o sociólogo.
Professora de história na EMEF Espaço de Bitita, no bairro do Canindé, em São Paulo (SP), Rosângela Mara Parlamento convive com a comunidade de bolivianos no estabelecimento de ensino.
“As realidades dos alunos são diferentes, sobretudo para aquelas pessoas que vêm de zonas rurais, da região andina, não da grande cidade de La Paz, Sucre e Santa Cruz de la Sierra. Para quem vem de regiões mais remotas da Bolívia, o choque cultural é grande. Os hábitos brasileiros são muito diferentes”, explica ela.
6) Expanda os conhecimentos de docentes e funcionários sobre a Bolívia
Kohatsu lembra que a cultura boliviana é plural. “São 36 línguas de povos indígenas e o espanhol como oficiais. Como muitos imigrantes bolivianos que vivem em São Paulo são originários das regiões andinas, manifestações culturais e folclóricas acabam sendo mais conhecidas, como dança morenada caporales, tinkus, diablada, salay, além dos grupos folclóricos da região amazônica”, assinala.
Na EMEF Espaço de Bitita, a gestão organizou uma expedição à Bolívia com diretor, professores, alunos, duas pesquisadoras e uma estagiária.
“Isso foi importante por promover conhecimento do país de origem desses alunos e aproximação. Gradativamente, a escola conseguiu a adesão de mais professores para projetos para estimular o protagonismo dos alunos migrantes e brasileiros”, revela Kohatsu.
7) Incorpore a Bolívia ao currículo
“É indicado incluir informações sobre a Bolívia e seus aspectos culturais de forma interdisciplinar, sempre propondo atividades que auxiliem na quebra de estereótipos e fomentem a parceria entre os estudantes brasileiros e bolivianos”, orienta Gondin.
“É importante não se limitar a atividades pontuais em datas específicas, apenas celebrando o folclórico e ressaltando o aspecto exótico da cultura, adverte o psicólogo.
“Fazemos uma dinâmica em que convidamos os estudantes bolivianos a falar sobre a cultura do seu país, e os brasileiros prestam atenção e ficam encantados em descobrir, por exemplo, que La Paz é uma cidade belíssima, com montanhas que a circundam de topos nevados e teleférico”, compartilha Parlamento.
8) Promova atividades interculturais
Pucci indica promover atividades interculturais, com alunos brasileiros e bolivianos, apresentando praticas culturais e corporais de seus países. “Isso pode ajudar a dispersar preconceito, motivado pelo desconhecimento de quem é diferente”.
A EMEF Espaço de Bitita foca em ações para que a cultura boliviana seja conhecida pelos estudantes locais e respeitada.
“Nós trabalhamos com comitês, e um deles se chama “Eu Vim De Lá”, que visa o acolhimento aos migrantes. Nele, os próprios estudantes, migrantes ou não, propõem ações de integração, como trazer comidas típicas para apresentar”, relata Parlamento.
“Em lugar de festa junina, nós tivemos uma festa das nações e um grupo de dança boliviano foi convidado para vir à nossa escola. Eles apresentaram uma dança magnífica”, diz.
“Além da festa da Independência, podem ser celebradas festividades como Alasitas (janeiro) e Inti Raymi, no solstício de inverno. E São Paulo ainda possui feiras bolivianas na Praça Kantuta, no Canindé; na rua Coimbra, no Brás; e na Paróquia de Nossa Senhora da Paz, no Glicério”, lista Kohatsu.
“Ao final, conhecer tradições culturais reconhece que os imigrantes bolivianos e seus descendentes integram e contribuem com a cidade”, finaliza Kohatsu.
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Crédito da imagem: RainStar – Getty Images