Professora de língua portuguesa na Escola Municipal Sebastião Tavares de Oliveira, na Praia Grande (SP), Raquel Santos Zandonadi sentia a necessidade de inserir leitura e escrita na rotina dos alunos do ensino fundamental II. “Gostaria de fugir das propostas dos materiais didáticos e considerar as individualidades deles”, relembra.

Dessas reflexões, surgiu a ideia de criar um projeto de autobiografia em sala de aula chamado “Minhas memórias: o embate de vozes na construção da identidade de alunos sujeitos”. Os estudantes foram convidados a redigir um livro de memórias, em oitos capítulos, sendo que cada um deles teria um tema específico, como ‘quem eu sou’ e ‘de onde eu vim’. “Assim, a atividade visou o resgate da contação de histórias, o compartilhamento de vivências e a valorização dos saberes e experiências de cada um”, justifica.

Diversas habilidades presentes no currículo de língua portuguesa foram trabalhadas, como o desenvolvimento de um texto conforme tema e situação sugeridos, a organização de informações de acordo com o gênero proposto e o uso de mecanismos e normas de escrita. Para compor os capítulos, os alunos ainda usaram gêneros como memórias, entrevista, poema, mapa, receita, além da leitura de romances, contos, crônicas, poemas e o contato com filmes e músicas.

“Para a escrita, eles utilizaram mecanismos linguísticos que permitem identificar o locutor e o interlocutor de um texto, a construção de significados a partir de recursos expressivos, a descrição dos locais e pessoas, a localização do leitor no tempo e no espaço da narrativa, entre outros”, elenca a professora.

Proposta de criação de livro de memórias aproximou escola e comunidade

 

Os resultados, contudo, foram além das questões curriculares. “A valorização das histórias da turma propiciou um processo de aproximação entre escola e comunidade; contribuindo para a construção da identidade dos estudantes e para a percepção de si mesmos como seres históricos. Eles passaram a ver a história e o espaço não como uma realidade dada, mas como algo construído pelas pessoas de seu convívio”, ressalta.

Ideias no papel

Para a proposta, Zandonadi pediu que os alunos relatassem suas vivências e experiências criando uma percepção positiva de suas histórias. “Ao final, houve um novo olhar sobre si e seu entorno”, afirma.
Segundo a aluna Júlia Costa Sampaio, o projeto ajudou a organizar pensamentos e ideias para colocá-los de maneira coerente em um texto. “Entendi que faz bem se expressar, nem que isso seja em papel”, revela.

Para Maria Fernanda Martins, entender o passado ajudou a valorizar o presente. “Me fez ver que as pequenas coisas de hoje fazem a diferença”, conta. “Você é capaz de chorar escrevendo a sua história, por que é esse o poder que a escrita tem, de transmitir, de lembrar e de emocionar as pessoas. Você pode desabafar o que sente”, revela.

Allany Hilstom Souza de Oliveira viu na atividade uma oportunidade para conversar com seus pais e avó. Por fim, a aluno Daniela Andrade De Melo ressignificou sua relação com a disciplina de língua portuguesa. “Eu odiava a matéria e não tinha nenhum interesse por escrita. Hoje, acho maravilhosa”, garante.

Além dos alunos, a iniciativa sensibilizou professores e docentes. “Embora a escola não tenha ferramentas para solucionar situações familiares complicadas, precisa ter, ao menos, empatia. O projeto proporcionou espaço para a escola conhecer as histórias de seus estudantes, muitas vezes, duras. E conhecê-las, ajuda a pensar em estratégias para estimulá-los”, opina.

O sucesso da experiência garantiu a Raquel Santos Zandonadi o 11º Prêmio Professores do Brasil, de 2018, na categoria ensino fundamental – 6º a 9º ano.

Raquel Santos foi uma das ganhadoras da 11ª edição do Prêmio Professores do Brasil

 

Homem na sociedade

Para a professora, o maior desafio do processo foi a correção e formatação de 130 livros com oito capítulos cada. “Precisei imprimir os livros em casa, embora a direção, parceira da ideia, tenha fornecido o material necessário”, revela.

Falar sobre as famílias dos alunos gerou debates inesperados. “É comum, em nossa época, outras configurações familiares. Falar sobre isso, compartilhando essas vivências, colabora para que os alunos percebam que cada família é única e toda experiência é válida”, reforça.

Curiosamente, no capítulo sobre a origem da família, muitos jovens relataram dificuldades na realização da entrevista com membros paternos, uma vez que não conviviam com o pai. “Em uma das turmas, essa era a realidade de 80% dos alunos, o que gerou reflexões a respeito do papel do homem na sociedade”, informa.

Veja mais:
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Alunos discutem invisibilidade social e repensam seu lugar na sociedade
Como os objetos podem ensinar sobre contextos históricos?

Crédito das imagens: arquivo pessoal

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Victor Corrêa Moreira
Victor Corrêa Moreira
5 anos atrás

Projeto mais do que belíssimo, necessário. Percebo, cada vez mais, que enquanto não soubermos quem somos e organizar nossa história pessoal, de nada adianta estudar a história nacional ou internacional. Uma das alunas responde bem essa questão quando diz que conseguiu, depois do projeto, organizar seu pensamento. É isso, saber quem sou, de onde vim, me organizar enquanto sujeito e olhar positivamente para o resultado.
Parabéns a professora pelo projeto, premiação mais do que merecida.

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