Desafios marcam a trajetória e o cotidiano de professores negros na educação básica pública. “A gente é perpassado pelo racismo estrutural e visualiza diariamente as nuances de como ele se manifesta, que nem sempre são explícitas”, comenta a pedagoga e professora da rede municipal do Rio de Janeiro (RJ) Flávia Mendonça Pereira.
Para ela, um exemplo é a pouca representatividade de pessoas negras entre professores ou nos cargos de gestão. “Mesmo pretos e pardos sendo maioria na sociedade, o mesmo não ocorre nas graduações de pedagogia, licenciaturas e, consequentemente, nos espaços de poder na educação”, descreve.
“Como consequência, há um estranhamento inicial por parte dos alunos e famílias quando estamos em sala de aula. Muitos não nos enxergam como professores e nos confundem com outros profissionais, como os da limpeza e merenda. Já aconteceu de entrarem na minha classe e me perguntarem onde a professora estava”, compartilha.
Importância da representatividade
A falta de representatividade também faz com que alunos negros não vejam o magistério como uma possibilidade profissional, como aponta o professor do ensino fundamental na prefeitura do Rio de Janeiro e fundador do coletivo Pais Pretos Presentes, Humberto dos Santos.
“Ter professores negros é importante para os alunos, porque o docente representa liderança e poder e mostra a esses estudantes que eles também podem ocupar espaços de destaque, quebrando estereótipos que associam a pessoa negra à marginalidade. Eu mesmo só enxerguei que poderia lecionar após ter um professor negro de desenho geométrico e, na graduação, uma professora negra de literatura inglesa”, destaca Santos.
“Uma professora relatou enxergar mudanças de atitude de uma aluna negra durante a minha aula, que se torna mais extrovertida e participativa. Como temos o mesmo perfil, cor de pele e cabelo crespo, penso que, de certa forma, ela se reconhece em mim”, relata a professora de inglês na rede municipal do Rio de Janeiro (RJ) Silvia Regina Rodrigues.

Para Santos, a falta de profissionais negros na educação impede que casos de racismo sejam devidamente debatidos e que a Lei nº 10.639/2003 – que torna obrigatória a inclusão da história e cultura afro-brasileira e africana no currículo da educação básica – seja contemplada em projetos interdisciplinares.
“Sem colegas apoiando, é mais difícil. Muitos professores brancos acreditam que não podem discutir a cultura afro-brasileira por não terem lugar de fala, quando, na verdade, é o oposto: precisamos de aliados que desenvolvam práticas antirracistas”, opina o docente.
“Eu sinto falta de colegas que busquem ajudar no letramento racial e no desenvolvimento de uma visão crítica dos alunos”, desabafa Rodrigues.
Ser o único professor negro de uma escola faz com que esse profissional seja compulsoriamente tratado como única referência para questões étnico-raciais, como explica Mendonça. “Por um lado, é positivo porque a escola também é feita de acolhimento e escuta; por outro, é solitário e cansativo, já que as demandas são muitas”.
Racismo de professores e alunos
Sobre manifestações de racismo explicitas, Mendonça relata escutar falas problemáticas de colegas contra alunos negros e periféricos nas salas dos professores. “Esquecem que eu também sou negra, da periferia e represento aquela população nesse espaço”.
Santos aponta comportamentos racistas de crianças com seus colegas e professores, geralmente reproduzindo conteúdos vindos do contexto familiar. “Entre alunos, o racismo se dá principalmente em relação à estética do cabelo negro, vista por pessoas brancas como algo desarrumado e sujo”.
“Alunos também são racistas com professores negros, o que causa adoecimento psíquico e afastamento do trabalho. Mandam, por exemplo, professores negros ‘voltarem para a África’”, descreve Santos.
Já com familiares de alunos e com a direção da escola, é comum o racismo religioso. “No Brasil não há uma compreensão clara da separação entre cultura e religião africana. Ao contrário de culturas como a nórdica, cuja mitologia pode ser estudada sem causar preocupação religiosa, como assistir a um filme sobre Thor, a cultura africana é tratada como algo ligado a magia. Professores que tentam ensinar sobre elementos culturais africanos ligados a divindades são frequentemente mal interpretados, revelando preconceito e falta de apreço pela cultura africana”, analisa o professor.
Denunciar o racismo, porém, é um processo visto pelos professores como violento e desgastante. “Quando você confronta o racismo, pode ser visto como militante, ‘esquerdista’. Além disso, pode prejudicar na ascensão da carreira, como nos casos de diretores que são votados pela comunidade escolar para o cargo. Se você quiser ser popular, não pode se envolver em temas tidos como ‘polêmicos’”, complementa Santos.
E, quando o racismo aparece entre alunos, Silvia explica que geralmente a questão é minimizada. “Como se fosse algo menor, pontual entre dois alunos. Penso que comentários depreciativos sobre o cabelo, ou o tipo de nariz de uma pessoa negra, têm que ser tratados em uma conversa com toda a classe, não de forma isolada”, opina Rodrigues.
Troca de experiências
Mendonça relata que, mesmo sozinha, busca aproveitar o espaço que ocupa para promover conscientização sobre racismo estrutural com os alunos.
“Questiono eles: por que a população mais assassinada e presente nos presídios é majoritariamente negra, enquanto nos espaços de poder — político, econômico e escolar — a maioria é branca. Isso mostra que o acesso a cargos de liderança e a decisões que transformam vidas está ligado a raça e etnia”, conta.
“Além disso, lecionar nas favelas, onde há maior vulnerabilidade, exige atenção, acolhimento e a compreensão de como o racismo atravessa a vida dos alunos. Muitos, por exemplo, tiveram pais assassinados ou privados de liberdade”, aponta.
Para diminuir a solidão, professores negros bucam se reunir em grupos virtuais com pares. O coletivo Pais Pretos Presentes, por exemplo, mantém um grupo de troca de informações e experiências entre professores pretos e pardos.
“Compartilhar experiências e dificuldades é importante, pois permite ver exemplos inspiradores e perceber que é possível promover mudanças, ainda que pequenas”, opina Rodrigues.
“Também permite acessar um vasto repertório de letramento racial que não temos na formação inicial”, finaliza Santos.
Veja mais:
Como trabalhar racismo ambiental e justiça ambiental na escola?
7 planos de aula para debater o racismo e conhecer pensadores negros
Série ‘Todo Mundo Odeia o Chris’ estimula professores e alunos a debaterem racismo na escola
mall data-plugininputid=”30″>Crédito da imagem: arquivo pessoal