Eleita a palavra do ano de 2016 pelo Dicionário Oxford, pós-verdade “denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e crenças pessoais”. Na atualidade, esse fenômeno é sustentado pelas fake news (notícias falsas), ainda que essas não sejam, propriamente, uma novidade.

“Mentiras e manipulações midiáticas e educacionais sempre existiram na história da humanidade. O que se vê, agora, é uma maior extensão dos efeitos desses termos devido ao alcance da internet”, explica o comunicólogo e professor da Universidade de São Paulo (USP), Ricardo Alexino Ferreira.

E os efeitos das fake news são concretos, podendo, inclusive influenciar eleições. Nesse contexto, quais os caminhos pedagógicos para educar contra a pós-verdade e evitar que os estudantes se contentem com discursos pouco consistentes?

Para o professor da faculdade de educação da USP, Nilson José Machado, o primeiro passo é discutir com os alunos o que é verdade. “Sua ideia como correspondência direta a um fato caducou, a não ser em situações simples e concretas, como ‘agora está chovendo’. O que acontece é que a mesma história pode ser contada de várias formas”, pontua.

“O filósofo Bertrand Russel dizia que duas eram as funções do professor. Primeiramente, não deixar que se consolidassem na cabeça dos estudantes narrativas únicas, ou seja, que só há um modo de contar algo. Isso alimenta dogmatismos”, descreve. “A segunda é também impedir a consolidação de retóricas binárias, maniqueístas, que falam sobre bem e mal. Essas são a matriz de todos os extremismos”, acrescenta.

De acordo com Alexino, duas correntes teóricas ajudam o educador a se aprofundar no conceito de verdade. A primeira, a Teoria Geral dos Sistemas, tenta verificar os fenômenos nos contextos, no passado e nas suas projeções de futuro. Já a dialética verifica os fenômenos, nega-os e depois procura uma síntese possível.

“Não adianta acreditar que existe o real e o não-real. Tudo pode ser verdade e tudo pode ser mentira, dependendo da perspectiva de quem conta a história ou narra uma notícia”, resume.

Contra o relativismo, contexto

Mas se uma história pode ser contada de várias formas, então, tudo é verdade? Como explica Machado, para não “pular” da verdade única para o relativismo absoluto, entra em cena uma palavra que será fundamental para os estudantes: contexto. Ou seja, para entender um determinado discurso, é necessário compreender todos os contextos que o circundam.

“Quais narrativas sustentam essa sentença: econômica, religiosa, histórica? Isso ajuda a ultrapassar o binarismo”, ensina.

Para Alexino, o melhor projeto pedagógico para ajudar o aluno a compreender os contextos de uma realidade é o interdisciplinar.

“Somente pela interdisciplinaridade é que o aluno tem a capacidade de verificar como os discursos são construídos”, defende Ferreira. “Por meio dela, é possível ver que o binarismo não se sustenta nem na matemática. O aluno inicia o pensamento entendendo que dois mais dois são quatro. Mas depois, é apresentado à estatística, lógica e funções, nas quais a ideia de verdadeiro ou falso não dá conta de explicar um fenômeno”, ilustra.

Para Ferreira, atividades pontuais não ajudam no processo analítico e reflexivo, nem do próprio aluno, nem do professor. “É preciso trabalhar contextos e conexões o tempo inteiro. Os fenômenos recortados dos seus contextos se perdem e se tornam ortodoxias”, alerta.

Vozes diversas

No combate a ideia de verdade única, outro elemento eficiente é a polissemia, em que diferentes vozes sobre o mesmo fenômeno são escutadas. “Geralmente, o ensino de história e o jornalismo são monossêmicos, quase sempre tendo uma única voz”, lembra o comunicólogo.

Contra o problema, a professora de filosofia da educação da USP, Carlota Boto, sugere aproximar os alunos da “história dos vencidos”. “É preciso, às vezes, lidar com as vozes das minorias. A literatura e a arte também oferecem recursos para abordar outras narrativas, que não sejam aquelas hegemônicas”, indica.

Por fim, Carlota defende atividades que ensinem o aluno a diferenciar informação de conhecimento. “Penso que ninguém quer ficar com uma informação falsa. Mas as pessoas, por vezes, ficam satisfeitas quando são informadas de algo que apenas reitera o que elas já julgavam saber. Nesse tempo de multiplicidade de informações, o papel dos educadores deve ser exatamente o de ajudar a diferenciar que nem toda a informação recebida constitui, propriamente, um conhecimento”, analisa.

Veja mais:
Atividades em que professor e aluno identificam fake news juntos são eficientes, diz pesquisadora
Plano de aula gratuito ensina estudantes a checar informações
Entenda o que é a pós-verdade, eleita a palavra do ano de 2016

Crédito da imagem: Rawpixel – iStock

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