Quando há um currículo padronizado nacional, – caso da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) – a parte diversificada do currículo é destinada a valorizar as manifestações sociais, culturais e econômicas regionais e das comunidades onde as escolas estão localizadas.
“É uma parte flexível do currículo na qual as secretarias de educação podem adicionar demandas e interesses daquela realidade local, seja município, bairro ou região do país”, descreve o professor da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Hugo Heleno Camilo Costa. “Na teoria, ela destaca o resgate e o respeito às várias manifestações de cada comunidade”, complementa a vice-coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas Curriculares (GEPPC) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Ângela Cristina Alves Albino.
Termo não é novo
Atualmente, 40% da BNCC são destinados à parte diversificada do currículo. O termo, porém, não foi inaugurado pela Base: Albino lembra que a LDB 9394/96 se refere a ele em seu artigo 26. “Os currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio devem ter uma base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos”, cita o texto.
A parte diversificada do currículo também foi anteriormente mencionada nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN/1997), bem como nas leis 10.639/2003 e 11.645/2008, que tornaram obrigatórias história e cultura afro-brasileira e indígena nos currículos oficiais das escolas.
Já a BNCC foi estruturada pela Lei nº 13.415/2017. “Na perspectiva dela, a parte diversificada do currículo deve pautar as características regionais e locais e seus aspectos econômicos e culturais. É criada como ‘parte’ para atender ao contexto local, social e individual da escola”, reforça Albino.
Problemáticas
Para Costa, a primeira é considerar o que acontece na escola como algo menor e secundário. “Questões centrais para aquela comunidade escolar não deveriam ser tidas como parte, mas o todo. Na mesma medida que, hoje, questões dissociadas da realidade escolar são tratadas como centrais”, critica.
A segunda é que as redes são pressionadas pelas avaliações de larga escala para priorizar os conteúdos generalistas de língua portuguesa e matemática cobrados nelas. “Os conhecimentos validados pelas avaliações de larga escala não estão nos 40% da parte diversificada, logo, ficam escanteados”, explica Albino.
“Já tive alunos de estágio da licenciatura em biologia que passaram semanas sem lecionar porque as escolas estavam treinando os alunos para fazer a avaliação da Rede Estadual, que condiciona a bonificação e premiação para as escolas e os docentes a um bom desempenho”, compartilha.
Para Costa, um terceiro ponto é a BNCC estipular uma parte diversificada do currículo, mas sua própria estrutura impedir que esta se concretize. “A BNCC é mais prescritiva que os antigos parâmetros curriculares. Ela tem força de lei e estipula inúmeras competências, habilidades e deveres a serem cumpridos no chão da escola mas não há margem para que se desenvolvam coisas alinhadas às necessidades locais. Assim, a escola concentra recursos e esforços para ensinar conhecimentos alheios à realidade local, que serão cobrados em avaliações padronizadas”, completa.
Além de deixar os conhecimentos locais subalternizadas, Albino aponta que os conteúdos escolares são apresentados recortados e isolados, diferente do que acontece na vida real. “Não se pode dividir de forma mecânica e estanque entre o que é local e o que é global, ou o que é nacional e o que é local em porcentagem 40% x 60%. Quando trabalhamos conhecimentos acontece um processo de transversalidade relacional e nenhum conhecimento é exterior à vida”, opina.
Consequências
Para Albino, a forma como a parte diversificada do currículo está estruturada pode gerar alunos analfabetos regionais, locais e sobre o Brasil. “O aluno sabe mais dos ‘outros’ do que como é organizado seu município e como ele se sustenta economicamente. É como ser paraibano sem saber o potencial artístico cultural de Jackson do Pandeiro”, ilustra.
A pesquisadora também cita que valores humanísticos são desvalorizados, deixando alunos mais suscetíveis a reproduzirem preconceitos sociais, como racismo, homofobia, xenofobia, entre outros. Já para Costa, o currículo dissociado com as demandas locais e trazidas pelos próprios alunos provoca perda de aprendizagem significativa e afastamento da escola.
“Acredito que poderíamos integralizar o currículo a partir da compreensão de que qualquer conhecimento é experimentado em um contexto cultural específico”, sugere Albino. “Isso ajudaria, por exemplo, a sairmos daquela lógica representativa e performática das feiras de ciências nas escolas, em que os estudantes decoram falas quando, do ponto de vista prático, não compreenderam a importância de separar o lixo seco do molhado em suas casas”, ilustra a docente.
Escuta e diálogo
Enquanto novas políticas curriculares não são pensadas em contexto nacional, Albino recomenda que professores e alunos discutam o que é importante ser ensinado a partir do que eles enxergam em seus contextos específicos – processo que exige observação, dialogo, escuta e valorização dos saberes dos próprios estudantes também.
“Quais saberes são importantes para a sobrevivência e que elevam aquela comunidade? Como lidamos com esses saberes na escola? Esses saberes são dispostos de forma subalternizada? São questões a serem feitas”, explica a educadora. Ela ainda aponta necessidade de formação docente para que escolas e comunidade pudessem pensar coletivamente suas necessidades de ‘dentro para fora’.
“Não há currículo democrático, sem que os docentes pensem seus currículos de forma coletiva e por meio do seu projeto político-pedagógico. É no reconhecimento político do local que brota o conhecimento cientifico universal e para empoderamento, não o contrário”, enfatiza Albino.
“Além disso, os educadores podem pensar algumas questões em seus planejamentos pedagógicos: o que entendemos por diversidade e que diversidade pretendemos contemplar no currículo das escolas e nas políticas de currículo?”, finaliza a docente.
Veja mais:
Conceitos de Paulo Freire ajudam professor a aliar saberes locais ao currículo
“Baixa criticidade do mundo empresarial está nos currículos escolares”, diz socióloga
Trabalho coletivo entre professores é desafio em contexto de contratos temporários