Em outubro de 2024 comemora-se o centenário do primeiro Manifesto Surrealista, escrito pelo escritor francês André Breton.

“O manifesto começou a ser elaborado com as primeiras experiências de escrita automática em 1919, mas foi publicado depois. Descreve o surrealismo como automatismo psíquico, ou seja, escrever e desenhar se opondo à atividade racional e fugindo de regras e morais estéticas”, introduz a historiadora, pós-doutora em literatura e docente do Departamento de Arte Visual da Universidade Estadual de Londrina (UEL) Marta Dantas.

“Seria produzir arte de forma espontânea, trazendo uma dimensão do inconsciente que não sofre censura do consciente”, acrescenta.

Em 1946, o segundo Manifesto foi lançado e definiu o surrealismo como uma tentativa de encontrar um ponto no qual os opostos deixassem de ser antagônicos. “Ou seja, um ponto de encontro entre inconsciente e consciente, realidade e imaginação, dentro e fora etc.”, explica Dantas.

Entre psicanálise e guerras

Doutor em filosofia, professor do Departamento de Artes da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e curador-chefe do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), Cauê Alves explica que o Manifesto Surrealista alia questões do psiquismo e sociais.

“Nasce influenciado pelo surgimento da psicanálise e das teorias de Sigmund Freud sobre o inconsciente (1896); entre duas grandes guerras; e dialogando com a teoria socialista e a revolução russa. Pensava que uma revolução deveria acontecer no interior das pessoas para, depois, ser social”, completa Alves.

Ele lembra que Breton se desentendeu com parte do surrealismo que se aproximou do fascismo, caso de Salvador Dalí com a ditadura espanhola, que culminou em sua expulsão.

“A Primeira Guerra trouxe questionamentos sobre o projeto de civilização voltado para o homem racional, cujos resultados foram devastadores. Os surrealistas não queriam a perda da razão, mas questionavam o seu império. E Freud era a prova disso ao afirmar que o inconsciente não se manifestava apenas nos sonhos, mas no dia a dia”, contextualiza Dantas.

Influência no Brasil

No campo artístico, o surrealismo sucedeu o dadaísmo, vanguarda de 1916 que rejeitava a arte convencional, promovendo caos e espontaneidade. “O surrealismo, de certo modo, retorna para o campo da arte e da ordem, voltando-se para revelar a dimensão do inconsciente, liberar o que não foi programado e valorizar o acaso”, resume Alves.

Apesar de ter se convencionado chamar o surrealismo de ‘movimento’, Dantas questiona tal definição. “Ele foi um modo de vida, uma prática. Os surrealistas acreditavam que por meio das artes seria possível se libertar de amarras morais e estéticas, inclusive do que era considerado escrever e desenhar bem”, explica a professora.

“Ou seja, não basta criar uma imagem surreal para um artista ser considerado surrealista, ele deveria viver surrealisticamente. Vida e obra estavam conectadas”, avalia.

No Brasil, o surrealismo encontrou um terreno fértil nas artes. Dantas explica que as vanguardas brasileiras estavam antenadas no tema já em 1924, sendo este abordado na revista Estética, editada por Prudente de Moraes e Sérgio Buarque de Holanda.

“Obras de artistas como Ismael Nery, Flávio de Carvalho, Cícero Dias, Jorge de Lima e Tarsila do Amaral tiveram influências surrealistas. Questões do surrealismo, sobre a construção de um novo homem, também aparecem na obra de Oswald de Andrade e no Manifesto Antropofágico (1928)”, analisa Dantas.

Entre surrealistas brasileiros, a professora destaca Maria Martins, cujas obras se inspiraram na mitologia dos povos originários e no feminino.

Para completar, na década de 1960, artistas brasileiros conhecidos como o Grupo Surrealista de São Paulo se aproximaram da temática e de Breton. A lista incluía Sérgio Lima, Leila Ferraz, Raul Fiker, Nelson Guimarães de Paula, Floriano Martins, Claudio Willer, entre outros.

Como trabalhar o surrealismo em aula?

Na educação básica, as correntes artísticas modernas, como o surrealismo, são abordadas em artes no ensino fundamental II. Para Dantas, apresentar o surrealismo na educação é importante para discutir liberdade.

“É preciso atenção para não sermos escravizados por questões morais, estéticas ou tecnológicas. Quantas crianças não deixam de desenhar porque querem um resultado parecido com o real?”, exemplifica Dantas.

Além disso, questionar o modelo civilizatório também é uma necessidade atual. “Temos a crise climática que resulta de um homem que não se vê como parte da natureza, mas acima dela”, sugere.

A seguir, conheça seis atividades que ajudam a trabalhar o surrealismo nas aulas de artes e de língua portuguesa.

ATIVIDADES

1) Fotomontagem e colagem

Enquanto a fotomontagem combina várias fotografias ou partes delas para criar uma nova imagem, a colagem pode acrescentar recorte de outros materiais, como tecidos.

“Ao desconfigurar imagens para criar algo novo, o estudante desconstrói padrões estéticos e a imagem do ser humano. Isso ajuda a entender que somos múltiplos, diversos, e que o conceito de normalidade é uma invenção”, ressalta Dantas.

2) Frottage

Técnica artística em que se esfrega um lápis ou outro material sobre uma superfície texturizada, como folhas, madeira ou pedras, para transferir sua textura para o papel.

“Max Ernest era um artista surrealista que trabalhava com essa técnica”, assinala Alves.

Na sequência, pergunte aos alunos sobre quais imagens eles enxergam nos desenhos. “A atividade é um modo de projetar imagens do inconsciente, de trazer o interno para fora”, explica Dantas.

“Apesar de termos uma ação, não foi o artista que criou a imagem. Isso pode ajudar o aluno a entender pontos da arte contemporânea: que a imagem trabalhada pode sugerir informações; que o artista não precisa fazer tudo, mas ter a ideia e outros a executarem”, descreve.

3) Observação de nuvens

Assim como ocorre na frottage, professor e alunos podem observar nuvens e discutir o que eles veem. “Seria olhar e projetar o inconsciente a partir de formas aleatórias das nuvens”, completa Alves.

4) Escrever, desenhar ou esculpir sonhos

“O mundo dos sonhos foi fundamental para a psicanálise e o surrealismo, por serem um modo de revelar aquilo que não está evidente, mas inconsciente”, defende Alves.

5) De olhos fechados

“O estudante faz um desenho de olhos fechados e, após abri-los, transforma aquilo que registrou em algo novo”, indica Alves.

6) Cadáver esquisito (desenho e texto)

Atividade realizada por surrealistas que consiste na construção coletiva de texto ou desenho. Para isso, a primeira pessoa escreve uma ou duas palavras, ou faz um desenho, e dobra o papel para não mostrar tudo à pessoa seguinte. “O ideal é escrever ou desenhar a primeira coisa que vier à mente e já repassar o papel aos colegas”, orienta Dantas.  Ao final, a turma lê o texto escrito ou analisa o desenho feito.

“O que está em jogo é a desconstrução do conceito de artista como alguém dotado de uma capacidade extraordinária. Pode-se discutir: como fica o conceito de artista e de criação se eu não tenho o controle do desenho? Qual o papel do acaso na arte?”, recomenda Dantas.

Veja mais:

Plano de aula – Salvador Dalí e o surrealismo

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Manifesto Pau-Brasil ajuda a ensinar língua portuguesa, literatura e artes

Crédito da imagem: MarkSwallow – Getty Images

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