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Escolha de itinerários muito limitada, falta de professores e expansão de carga horária baseada no ensino à distância. Essas são algumas das conclusões do estudo sobre a implementação da reforma do ensino médio no estado de São Paulo produzido pela Rede Escola Pública e Universidade (Repu). A análise dos dados demonstra que o chamado Novo ensino médio causa retrocesso e aumenta as desigualdades escolares.

“Se esta reforma não prevê investimentos nas escolas para equalizar condições de implementação, de currículo flexível, essa reforma não tem outro caminho que não seja gerar desigualdade. E os dados mostram isso de uma maneira muito clara”, afirma o professor de políticas educacionais da Universidade Federal do ABC, integrante da Repu e do comitê diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Fernando Cássio.

No áudio, ele comenta em detalhes a pesquisa, que analisou as promessas feitas quando a lei do novo ensino médio foi proposta: liberdade de escolha para estudantes e expansão da jornada escolar no período noturno, para equiparar à carga horária do ensino médio matutino e vespertino. “Estudantes mais pobres, mais vulneráveis, estão tendo uma condição de escolarização pior e, não só pior, mas piorada pela reforma. Essa é uma situação muito grave. Nós, que estamos envolvidos na pesquisa, não vemos como essa reforma tenha como produzir alguma coisa diferente disso”, conclui.

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Atualizada em 20/07/2022, às 17h18

Transcrição do Áudio

Música: Introdução instrumental de “O Futuro que me Alcance”, de Reynaldo Bessa, fica de fundo

Fernando Cássio:
O que nós vemos já neste primeiro semestre de implementação, no novo ensino médio, é a ampliação de desigualdades entre ricos e pobres. Esse é o modelo da reforma, né? Se esta reforma não prevê investimentos nas escolas pra equalizar condições de implementação, de currículo flexível, essa reforma não tem outro caminho que não seja gerar desigualdade. E os dados mostram isso agora, de uma maneira muito clara.
Eu sou Fernando Cássio, professor de políticas educacionais da Universidade Federal do ABC, integro a Rede Escola Pública e Universidade (Repu) e também faço parte do comitê diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

Vinheta: Instituto Claro – Educação

Música de Reynaldo Bessa, instrumental, fica de fundo

Marcelo Abud:
A Rede Escola Pública e Universidade (REPU) divulgou, em junho, uma nota técnica com resultados que mostram como foi o primeiro semestre de implementação do novo ensino médio em São Paulo.

Fernando Cássio:
É uma pesquisa que foi feita no estado de São Paulo, porque o estado de São Paulo é o primeiro estado do Brasil a, de fato, fazer uma implementação em grande escala da reforma do ensino médio, dentro daquelas diretrizes, né, da Lei 13.415. É importante dizer isso, porque a pesquisa é orientada no sentido de testar – sistematicamente e com rigor – aquelas promessas que a reforma do ensino médio, que as propagandas governamentais colocavam como a grande revolução que a reforma traria.

Trecho de comercial do Ministério da Educação, de 2017:
Locução: Com o novo ensino médio, você tem mais liberdade para escolher o que estudar, de acordo com a sua vocação.

Marcelo Abud:
Fernando Cássio relembra as promessas feitas pela campanha do MEC à juventude brasileira.

Fernando Cássio:
Primeira promessa, de liberdade de escolha. Mas não só isso… flexibilizar esse currículo, então, reduzir a formação básica a português, matemática e inglês e mais ali alguma coisinha das disciplinas escolares, e todo o resto seria formado pelos chamados itinerários formativos que poderiam ser escolhidos pelos estudantes. Então, é uma promessa de liberdade.
A segunda promessa é uma promessa que tem a ver com a jornada escolar: de que é preciso diminuir as desigualdades. Portanto, estudantes trabalhadores que estudam à noite vão precisar ter uma carga horária maior, comparável aos estudantes que estão no período diurno e, além disso, uma expansão considerável nas escolas chamadas de tempo integral, em todas as redes estaduais, e que precisariam ali ter uma formação mais próxima disso.

Marcelo Abud:
O estudo avalia se realmente a implementação do novo ensino médio representa liberdade de escolha para estudantes.

Fernando Cássio:
Todo mundo que conhece a escola pública, sabe perfeitamente que a escola pública tem uma série de limitações materiais. E a reforma do ensino médio ela é uma reforma de currículo. Ela não é uma reforma educacional que prevê a ampliação da infraestrutura da escola; ela não prevê a contratação de uma quantidade suficiente de professores pra lidar com as novas demandas; ela não é uma reforma que prevê políticas de permanência estudantil – para os estudantes ficarem mais tempo na escola. Então, assim, ela vai fazer essa fragmentação, essa flexibilização curricular com a estrutura existente.

Marcelo Abud:
Os dados obtidos apontam que cerca de ¼ das escolas de ensino médio ofertam apenas dois itinerários formativos no estado de São Paulo.

Fernando Cássio:
São mais ou menos 3.600 escolas de ensino médio. 952, que é uma quantidade considerável, ofertam os mesmos dois itinerários formativos – só dois e os mesmos dois. Um itinerário formativo que mistura linguagens e ciências humanas e outro que mistura matemática e ciências naturais. Quer dizer, você tem variáveis que estão determinando a oferta.
Uma dessas variáveis é o tamanho da escola. Então, o estudo mostra que escolas pequenas ofertam poucos itinerários, em geral. Escolas maiores podem ofertar mais itinerários. Mesmo aquelas que podem ofertar um número de itinerários grande – escolas com 2.000 alunos – muitas delas não ofertam muitos itinerários. E aí nós conversamos com gestores, com diretoras, com diretores e constatamos que em muitas dessas escolas, a gestão prefere ofertar um número menor de itinerários pra garantir uma certa organização no trabalho dos professores na escola, pra não ter falta de professor.

Música: “Ensinar por Ensinar” (Reynaldo Bessa)
Para não se deixar oprimir
É preciso ver, pensar e agir

Fernando Cássio:
Essa multiplicação de itinerários ela implica uma intensificação do trabalho de professores, em vez de você ter uma professora, um professor de uma disciplina com várias turmas, você tem um professor com múltiplos itinerários, com várias turmas. Isso muda totalmente a forma de trabalhar dos professores, mas o regime, as condições para preparar as aulas, o tempo pra estudar, o tempo pra discutir o currículo ele não é aumentado proporcionalmente à quantidade de trabalho.
Então, quer dizer, um dos efeitos dessa fragmentação curricular tem sido, no estado de São Paulo, a falta de professores, que é um efeito colateral muito grave. Então, a gente tem uma reforma que prometeu revolucionar a escola, fazer os estudantes se reaproximarem da escola, se encantarem com a escola; na verdade, esta escola não tem professor. Em termos de infraestrutura básica, de qualidade básica, o novo ensino médio ele representa um retrocesso em relação à situação anterior, que já não era boa.

Marcelo Abud:
Fernando Cássio explica qual a relação entre oferta de itinerários formativos e indicadores socioeconômicos na rede estadual paulista.

Fernando Cássio:
Além de observar essas distorções entre escolha e oferta, a gente vai ver que a variedade dos itinerários formativos, portanto, a possibilidade de fazer escolhas também é condicionada por variáveis socioeconômicas. Estudantes que estudam em escolas que atendem populações mais pobres, com famílias menos escolarizadas, com renda menor, essas escolas tendem a ter uma variedade de itinerários formativos menor do que as outras. E esse é um achado muito relevante, porque esse é um achado que fortalece as críticas da pesquisa educacional à reforma do ensino médio, lá em 2016/2017. Quais eram as críticas? Que essa reforma, do jeito como foi proposta, tem um potencial de amplificar desigualdades educacionais no Brasil. O que a gente vê, de fato, é isso, né, é que a oferta de itinerários ela seleciona ricos e pobres, portanto, isso é uma coisa grave. Nenhuma reforma educacional destas proporções pode ser feita no sentido de ampliar desigualdades.

Marcelo Abud:
A pesquisa também traz dados inéditos sobre como está sendo feita a expansão da carga horária para estudantes do período noturno.

Fernando Cássio:
O novo ensino médio prevê que todos os estudantes do ensino médio precisam ter, no mínimo, 3 mil horas letivas, divididas mil horas a cada ano, nos três anos do ensino médio. Isso é um problema para os estudantes do período noturno, porque os estudantes que estudam à noite eles têm menos aulas por dia – eles chegam na escola às 7 da noite e saem às onze da noite. Então, os estudantes que estão de dia ou mesmo à tarde eles têm um número maior de aulas por dia. Na prática, isso vai significar uma diferença de carga horária total no final do ensino médio.
No estado de São Paulo, pra gente exemplificar, estudantes do matutino, do vespertino têm aí um pouco mais de 3 mil horas no ensino médio. E os estudantes do ensino noturno têm 2.250. Esse era o quadro até o ano de 2021, previamente à implementação da reforma. Quer dizer, como é que a gente amplia a carga horária para esses estudantes para que a gente possa cumprir a lei? Como que a gente faz o estudante trabalhador – que está no ensino noturno não por gosto de sair às onze da noite, mas porque precisa – como é que a gente faz esse estudante em vez de chegar às 7 horas da noite na escola, chegar às 5 da tarde, pra gente poder expandir a carga horária dele e ele ter um ensino médio equivalente àquele estudante que estuda de manhã?

Marcelo Abud:
A reforma do ensino médio propõe a expansão da carga horária de quem estuda à noite, mas não apresenta nenhuma política de permanência. O pesquisador cita o que acontece em universidades públicas como modelo a ser seguido para essa parcela de estudantes.

Fernando Cássio:
Então, as universidades públicas, há décadas, elas têm políticas de permanência estudantil. O que são políticas de permanência estudantil? Transferência de renda: bolsa trabalho, bolsa alimentação, bolsa moradia, é assim que as universidades fazem, todas, estaduais, federais. Tem muitos estudos de implementação desse tipo de política, tem fundo nacional, política nacional, o Pnaes, né, é uma rubrica do governo federal destinada a esse tipo de auxílio.
A reforma do ensino médio ela não tem nada a ver com isso. Então, ela quer expandira a carga horária do estudante-trabalhador, mas ela não tem associada a ela uma política de permanência.

Marcelo Abud:
Em vez de políticas que incentivem a permanência na escola, o ensino a distância tem sido utilizado como forma de completar a carga horária no período noturno.

Fernando Cássio:
Mais de 93% das turmas de expansão são feitas à distância. E aí a gente vai olhar pra trás, né, vamos ver a pandemia, vamos ver todas as formas de oferta de ensino remoto usadas em caráter emergencial, e a gente vai ver que uma expansão do ensino regular feita à distância não tem como produzir igualdade de condições. Não adianta você distribuir um chip no celular para o estudante, pra ele usar um celular pra estudar, pra fazer tarefa, pra escrever. Assim, é preciso ter a consciência do que é necessário em termos de condições pra você ter uma escolaridade digna, mínima. Os estudantes não têm computador, não tem a internet, não tem o ambiente de estudo em casa.
Então, é o que nós estamos vendo, né, nós estamos vendo um tipo de expansão de carga horária que, na prática, representa o descumprimento da própria lei da reforma do ensino médio, que é tão defendida por esses mesmos atores que implementam o novo ensino médio. Quer dizer, não faz sentido.

Marcelo Abud:
Em outros estados, o ensino a distância também tem sido a opção mais recorrente.

Fernando Cássio:
Então, por exemplo, no Paraná, os chamados itinerários profissionalizantes também são feitos à distância, mas de uma outra forma. O governo contratou uma universidade privada, que prepara o material – grava aquilo – e esse material é transmitido, nas escolas, em televisores, dentro das salas de aula. Então, os alunos saem de casa, vão pra escola, pra assistir televisão. Quer dizer, em vez de ter um professor em sala de aula, eles estão assistindo TV. É uma outra modalidade de ensino a distância, no formato de telecurso.

Música: “Televisão” (Tony Bellotto / Arnaldo Antunes / Marcelo Fromer), com Titãs
A televisão me deixou burro, muito burro demais
Agora todas coisas que eu penso me parecem iguais

Fernando Cássio:
O que a gente tira de conclusão olhando para estes três elementos: o debate sobre a liberdade de escolha, o debate sobre a falta de professores e o debate sobre a expansão da carga horária? Que o novo ensino médio aumenta as desigualdades escolares no estado de São Paulo. Não há como… todos os elementos analisados apontam para um mesmo problema: estudantes mais pobres, mais vulneráveis estão tendo uma condição de escolarização pior e, não só pior, piorada pela reforma. Essa é uma situação muito grave. Nós que estamos envolvidos na pesquisa, a gente não vê que essa reforma tenha como produzir alguma coisa diferente disso.

Música de Reynaldo Bessa, instrumental, fica de fundo

Marcelo Abud:
A conclusão do grupo de pesquisadores que desenvolveu o estudo é de que o novo ensino médio, ao contrário do que promete, limita as escolhas de estudantes e piora as condições de formação dos que mais necessitam de uma escola de qualidade.
Com apoio de produção de Daniel Grecco, Marcelo Abud para o Instituto Claro.

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