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Jornalista de educação desde 1996, Antônio Gois está lançando o livro “O ponto a que chegamos – duzentos anos de atraso educacional e seu impacto nas políticas do presente”. Nele, o atual quadro insatisfatório da educação brasileira é apresentado como resultado de um longo processo histórico de descaso e de decisões equivocadas.

“Eu percebia que havia um certo senso comum equivocado de que a gente tinha no passado uma educação pública de qualidade. O problema é que esse tipo de discurso estava influenciando políticas públicas. Então, as pessoas partiam de uma ideia romantizada e equivocada sobre o que era o passado educacional brasileiro para justificar políticas arcaicas, políticas que vão na direção contrária do aumento da aprendizagem e da maior qualidade da educação”, explica.

No livro, o sistema educacional do passado é mostrado como uma máquina de exclusão e que tinha na repetência um instrumento de eliminar estudantes que não eram “exemplares”. “Na década de 1960, de cada mil, apenas 64 [alunos] chegavam até o final do que é hoje o ensino médio”, exemplifica.

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Transcrição do Áudio

Música “Eletrosamba” – Quincas Moreira, fica de fundo

Antônio Gois:
Ao longo da minha carreira, eu comecei a me interessar mais em ler sobre história da educação. E aí eu fui percebendo quanto, como jornalista, me faltava esse conhecimento do passado, porque muitos dos debates que a gente trata como atuais, tem uma raiz histórica ali, que ajuda a gente a entender melhor certos debates do presente. Por exemplo, a desigualdade de recursos entre a união e os estados e municípios. Então são vários temas que eu fui me convencendo que, pra gente entender melhor e fazer o melhor diagnóstico das políticas do presente, a gente precisa primeiro compreender o nosso passado.
Olá, eu sou Antônio Gois, sou jornalista especializado em educação e acabei de lançar o livro “O Ponto a que chegamos: duzentos anos de atraso educacional seu impacto nas políticas do presente”.

Vinheta: Livro Aberto – Obras e autores que fazem história

Música de Reynaldo Bessa, instrumental, fica de fundo

Marcelo Abud:
Desde a época dos jesuítas, a educação já é elitizada. Até a abolição, os negros – nem os libertos – podiam ir à escola. São fatos históricos que enfatizam problemas do passado e refletem nas políticas públicas voltadas à educação do presente. Este é o tema do livro “O Ponto a que chegamos”, escrito pelo jornalista de educação Antônio Gois.

Antônio Gois:
Eu coloquei um projeto no papel por causa da efeméride dos 200 anos da independência do Brasil. E daí surgiu a ideia do livro, né, de falar um pouco como o Brasil foi construindo seu atraso histórico nesses 200 anos, mostrando como desde a nossa origem como nação independente as raízes da desigualdade, do atraso educacional já estavam lá, já eram visíveis, é possível perceber.
E, também, outro fator que me motivou a escrever este livro, é que eu percebia que havia um certo senso comum equivocado de que a gente tinha no passado uma educação pública de qualidade. Enquanto isso tá em conversas de bar, de família, em grupos de zap, isso é só a opinião das pessoas, tudo bem, todo mundo tem o direito a ter sua opinião. O problema é que esse tipo de discurso tava influenciando políticas públicas, né? Então as pessoas partiam duma ideia romantizada e equivocada sobre o que que era o passado educacional brasileiro pra justificar políticas arcaicas, políticas que vão na direção contrária do aumento da aprendizagem e da maior qualidade da educação.

Som de página de livro sendo virada

Marcelo Abud:
No livro, Gois trata do atual quadro insatisfatório da educação brasileira como resultado de um longo processo histórico de descaso e de decisões equivocadas.

Antônio Gois:
Na década de 40, de cada mil crianças que ingressavam na primeira série do antigo ensino primário, que hoje é o nosso ensino fundamental, somente 404 sobreviviam pro segundo ano. Do primeiro pro segundo ano do ensino primário, mais da metade das crianças ficava pelo meio do caminho. Elas reprovavam, reprovavam, reprovavam e abandonavam a escola. Os que chegavam, na década de 40, até o final do terceiro ano do colegial, que seria hoje nosso ensino médio, são apenas vinte de cada mil, 2%.
Na década de 60, o sistema se expande, mas essa realidade continua igual. De cada mil que ingressavam, mais da metade não passava sequer pra segunda série, da primeira pra segunda série já havia um corte absurdo e de cada mil apenas 64 chegavam até o final do que é hoje o ensino médio, naquela época, se chamava a terceira série do colegial.

Música: “Desde que o samba é samba” (Caetano Veloso), com Caetano Veloso e Gilberto Gil
Desde que o samba é samba é assim
A lágrima clara sobre a pele escura

Antônio Gois:
O que esses dados trazem? Talvez aquelas pessoas que têm uma memória positiva do que era a escola pública do passado, muito provavelmente são pessoas que estão nesse seleto grupo dos poucos que chegavam até o fim. Mas, o fato é que, olhando pra essas estatísticas compiladas pelo MEC e pelo IBGE, e vários autores fizeram isso ao longo de vários períodos do século 20, o que se conclui é que o sistema educacional brasileiro era uma grande máquina de exclusão em massa, que abusou do expediente da repetência sem que, isso é muito importante, isso resultasse em mais qualidade. Então o livro traz muita evidência sobre isso, para aquelas pessoas que estão dispostas a dialogar e que acreditam nesse mito da educação pública de qualidade no passado, mas que estão dispostas a ‘deixa eu entender aqui um pouco, ver esses argumentos’ eu espero que meu livro ajude a convencer de que o sistema educacional do passado, lembrando que eu tô falando do sistema, ele não nos serve de parâmetro pra educação pública que a gente quer hoje, que é uma educação de qualidade e pra todos. Estamos longe disso, mas o sistema educacional do passado não nos serve como norte pra que a gente chegue a esse objetivo

Som de página de livro sendo virada

Marcelo Abud:
Nos capítulos, o sistema educacional do passado é apresentado em contraponto ao discurso de uma educação pública de qualidade.

Antônio Gois:
A primeira parte é mais histórica, que eu vou falando como o Brasil foi construindo seu atraso. E a segunda parte, eu tô analisando políticas do presente considerando o nosso atraso histórico. Aonde que eu acho que é importante a gente entender o nosso atraso histórico pra evitar conclusões precipitadas? Por exemplo, quando se argumenta que o Brasil hoje investe mais do que os países ricos – em educação – quando se compara a proporção do PIB. Isso é verdade, se você olhar a proporção do PIB, o Brasil gasta mais do que a média da OCDE, que é uma organização que congrega países desenvolvidos.
Quando isso é traduzido pro gasto por aluno, já não é verdade, porque o PIB brasileiro é bem menor do que o PIB de países ricos, mas olhando em percentual do PIB, alguém pode dizer, como comumente dizem ‘ah, o Brasil já gasta como os mais ricos e não tem o resultado dos mais ricos.’ E aí o que eu tento trazer de contribuição nesse livro é mostrar o seguinte: a gente tem o peso do atraso muito grande. Somente agora, na década passada, ou seja, em pleno século 21, que a gente finalmente foi alcançar o percentual que os países mais ricos gastam em educação, quando esses países, alguns desde o século 19 e a maioria desses países desenvolvidos já ao longo de todo o século 20, eles já gastavam muito mais do que o Brasil em educação.

Marcelo Abud:
A educação brasileira do passado é mostrada por Gois como uma máquina de exclusão.

Antônio Gois:
E isso tem um peso porque, em educação, o peso da transferência intergeracional, e eu explico isso num dos capítulos do livro, ele é muito forte. O que eu tô dizendo com isso? Filhos de pais mais ricos e mais escolarizados têm uma vantagem acadêmica que não tem nada a ver com o seu esforço ou com o que acontece na escola. Isso é herdado dos pais. É porque você está numa casa em que desde cedo você ouve um vocabulário mais amplo, desde cedo você tem mais acesso a livros, então num ambiente mais letrado, você não sofre graves problemas da pobreza, da extrema miséria, você não sofre de desnutrição. Repare que nenhum dos exemplos que eu dei agora tem a ver com mérito. Claro que tem alunos que vão se esforçar mais, outros menos e eles vão merecer melhores resultados por causa do seu esforço, não é disso que eu estou falando, estou falando dessa extrema desigualdade do nosso ponto de partida.

Música: “Cota não é esmola” (Bia Ferreira)
Existe muita coisa que não te disseram na escola
Cota não é esmola
Experimenta nascer preto na favela, pra você ver

Antônio Gois:
Então sem entender isso, é difícil até convencer a sociedade de que a gente precisa trabalhar em políticas públicas educacionais com um conceito da equidade que é, você trata os desiguais de forma desigual, reconhecendo que tem uma desigualdade que é injusta – não estou falando que a gente vai acabar com desigualdade, isso nunca vai acontecer – mas tem certas desigualdades que são absolutamente injustas, elas são frutos da sorte ou do azar duma criança ter nascido numa casa de pais mais ou menos ricos e escolarizados, e é essa a desigualdade que a gente precisa combater com políticas de equidade, que reconheça que essas crianças que precisam mais, elas precisam dos melhores esforços possíveis pra compensar, ou pelo menos, amenizar essa desigualdade, repito, injusta que elas trazem de berço.

Som de página de livro sendo virada

Marcelo Abud:
Antônio Gois lê um trecho que está na abertura do livro “O Ponto a que Chegamos”.

Antônio Gois:
‘Cidadãos de todas as classes, mocidade brasileira, vós tereis um código de instrução pública nacional, que fará germinar e vegetar viçosamente os talentos deste clima abençoado, e colocará a nossa Constituição debaixo da salvaguarda das gerações futuras, transmitindo a toda a nação uma educação liberal, que comunique aos seus membros a instrução necessária para promoverem a felicidade do grande Todo Brasileiro.’
Essas são palavras muito bonitas, muito inspiradoras, elas foram feitas por Dom Pedro I, poucos dias antes da data oficial da Independência, chamado ‘Manifesto de sua Alteza Real aos Povos deste Reino’. O que a gente pode olhar hoje, 200 anos depois, analisando as promessas que foram feitas nessa e em outras leis que surgiram, em outros discursos que surgiram depois, o que a gente pode concluir com segurança é que essas promessas nunca foram cumpridas. Eram promessas que ficavam só no papel, só no discurso, porque na prática ainda éramos uma nação desigual, elitista e escravocrata. Então era impossível cumprir promessas tão generosas sendo uma nação tão atrasada.

Música de Reynaldo Bessa, instrumental, fica de fundo

Marcelo Abud:
No livro, Antônio Gois apresenta de que forma os duzentos anos de atraso educacional têm impacto no ponto a que chegamos e o que devemos rever desse passado para as políticas públicas do presente.
Marcelo Abud para o Livro Aberto, do Instituto Claro.

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