Ouça também em: Ouvir no Claro Música Ouvir no Spotify Ouvir no Google Podcasts Assina RSS de Podcasts

O tema central das obras de Milton Hatoum é o drama familiar. Em “Dois Irmãos”, que passa a integrar a lista de livros do vestibular da Fuvest 2024, as relações entre dois irmãos gêmeos dão o tom. Na casa da infância, em Manaus, eles convivem com a mãe, o pai, a irmã e com a empregada Domingas e o filho dela, Nael. É pelo ponto de vista desse menino que leitores acompanham a saga vivida e testemunhada por ele. 

“Eu queria, em ‘Dois Irmãos’, um narrador que fosse um agregado, o filho de uma mulher levada para trabalhar, conduzida sem salário na casa de uma família de imigrantes. E ele é o porta-voz da memória dessa família”, explica o escritor Milton Hatoum.

A dúvida sobre a paternidade faz com que Nael remonte seu passado. Ele narra os fatos como testemunha da ascensão e queda tanto da família da qual faz parte como da região em que vive. 

Para o professor e autor do Sistema Anglo de Ensino e mestre em literatura brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), Maurício Soares Filho, o fato de o drama familiar do livro acontecer em torno do porto de Manaus, à margem do rio Negro, enriquece a narrativa. Da mesma forma, “oferece elementos que acrescentam nas imagens que o leitor é capaz de fazer tanto da ambientação física quanto da temperatura, da relação com o rio, do movimento do comércio, da venda do peixeiro e o contato dele com a empregada negociando o valor do peixe”, diz.

Por meio de um paralelo entre a Manaus retratada no livro e a atual, torna-se possível discernir tanto o esplendor quanto a decadência que permeiam a cidade. Em uma escala maior, os dois irmãos gêmeos da trama — Yakub e Omar — representam, também, duas faces de um mesmo país. “Nós, irmãos, não sabemos ver o outro, conversar com o outro que é o mesmo também, falar a mesma língua. Então acho que aí tem uma metáfora sobre esses Brasis inconciliáveis, vamos dizer assim, a partir da história de cada um, da trajetória de cada irmão e de seus destinos”, conclui Hatoum.

Veja mais: 

9 podcasts sobre livros do vestibular da Fuvest 2022 e 2023

10 podcasts para entender os livros do vestibular Unicamp 2022 e 2023.

Fuvest 2024: ‘Marília de Dirceu’ traz culto à natureza e ao amor

Unicamp 2024: professor analisa canções de Cartola que entraram na lista do vestibular 

Transcrição do Áudio

Música instrumental, de Reynaldo Bessa, fica de fundo

Milton Hatoum:

A literatura é também um instrumento de conhecimento da realidade. Ela é humanizadora, por suas contradições, inclusive. Os dois irmãos têm suas virtudes – não são muitas, né? – mas têm muitos defeitos também. Eu não escrevi para exaltar uma família, ao contrário, para mostrar as tensões, os conflitos, a exploração de uma mulher indígena também. 

Eu acredito que um jovem com uma leitura orientada vai extrair muita coisa do romance: a questão de Manaus, o conflito familiar, da imigração árabe para a Amazônia, que pouca gente sabe como se deu isso, né? Se deu no Brasil todo…

Eu sou Milton Hatoum, sou escritor nascido em Manaus. 

Vinheta: Livro Aberto – Obras e autores que fazem história

Música de Reynaldo Bessa, instrumental, fica de fundo

Marcelo Abud: 

Nesta edição do Livro Aberto, acompanhe uma análise de pontos importantes do livro mais conhecido de Milton Hatoum: “Dois Irmãos”. 

Juntamente com o próprio escritor, você ouve o professor e autor do Sistema Anglo de Ensino e mestre em literatura brasileira pela Universidade de São Paulo, USP, Mauricio Soares Filho. Eles destacam pontos que podem ser o foco do vestibular da Fuvest, como a escolha do narrador, a representação de dois Brasis nas personalidades dos dois irmãos gêmeos da narrativa e a importância de Manaus, que é – ao mesmo tempo – cenário e personagem do romance. 

Milton Hatoum:

O tempo do romance é anterior ao meu nascimento, ele vem dos anos 40 e vai até os anos 70. Mas a Manaus do ‘Dois Irmãos’ praticamente não existe mais. Muitos edifícios do centro histórico foram destruídos. Aliás, esse é um dos temas do romance. Manaus é uma personagem desse romance. O livro conta também um pouco do esplendor e da decadência da cidade. 

Os espaços da infância, os lugares frequentados pela minha geração nos anos 60: igarapés, que eram os banhos, algumas praças são lugares que já não existem mais. Os igarapés foram poluídos e a cidade que tinha alguma harmonia com a natureza, agora não tem mais. 

Música: “Saga da Amazônia” (Vital Farias), com Elba Ramalho
Sorria o jurupari, uirapuru, seu porvir
Era fauna, flora, frutos e flores

Marcelo Abud:

Mauricio Soares Filho observa que o fato de o drama familiar do livro acontecer em torno do porto de Manaus, à margem do rio Negro, enriquece a narrativa. 

Mauricio Soares Filho: 

Oferece elementos que acrescentam nas imagens que o leitor é capaz de fazer tanto da ambientação física quanto da temperatura, da relação com o rio, do movimento do comércio, da venda do peixeiro e o contato dele com a empregada negociando o valor do peixe. 

Milton Hatoum:

O Mercado é uma espécie de ponto de confluência entre a cidade e a floresta e o rio. Meu pai me levava ao mercado, às vezes, de manhã cedo, e o cheiro daqueles peixes, daquelas frutas todas era impressionante. Aquilo marcou muito a minha infância e a minha primeira juventude. E as vozes dos comerciantes, alguns nem falavam português ainda. 

Essa área é o coração mais vibrante de Manaus. E esse cheiro que está no livro, que transmite ao leitor essa sensação de estar nessa área é porque eu vivenciei tudo isso e eu nunca mais esqueci. 

Som de página de livro sendo virada 

Marcelo Abud:

O drama familiar envolve, além de dois irmãos gêmeos, a convivência com a mãe, o pai e a irmã. Na casa, vivem ainda a empregada da família e o filho dela. É ele que, trinta anos depois, narra tudo o que testemunhou.

Milton Hatoum:

Eu queria em ‘Dois Irmãos’ um narrador que fosse um agregado, que fosse o filho de uma mulher que foi levada pra trabalhar, conduzida pra trabalhar sem salário na casa de uma família de imigrantes. E ele é o porta-voz da memória dessa família. Ele sobrevive e estuda também. Tem uma formação graças ao avô Halim – que tem vários significados em árabe, né? – Halim é pessoa generosa, cordata, tem dignidade. 

Mauricio Soares Filho:

O aspecto principal dessa obra é a construção do narrador, filho da empregada da casa Domingas, uma indígena que foi simplesmente oferecida à Zana como um objeto e que passou sua vida toda servindo a essa família. Como se não bastasse, ainda teve um episódio de abuso de um dos gêmeos sobre ela.

Milton Hatoum:

A questão é como você trabalha os personagens, o narrador, os conflitos, a relação entre eles, todas essas nuances que o romance pede, com seus enigmas, porque há também enigmas que são indecifráveis. E no caso do ‘Dois Irmãos’ é a paternidade. Quem é o pai do narrador ninguém sabe, porque eu também não sei. 

Mauricio Soares Filho:

E fica a questão perseguida pelo narrador, ao longo do livro todo, a respeito de quem é seu pai. E nós leitores que também não sabemos uma resposta definitiva, vamos recebendo estas pistas e sendo apresentados a ela pela voz desse menino e depois desse homem que quer entender a sua história e quer entender afinal de contas onde ele se localiza dentro dessa família.

Som de página de livro sendo virada

Marcelo Abud:

Mauricio Soares Filho lê um trecho do livro. 

Mauricio Soares Filho:

É um trechinho do capítulo 5, quando Yakub, depois de já estar morando em São Paulo, uma das vezes que ele vai visitar a família em Manaus: 

(com violão ao fundo) ‘Quando soube que ele ia chegar, senti uma coisa estranha, fiquei agitado. A imagem que faziam dele era a de um ser perfeito, ou de alguém que buscava a perfeição. Pensei nisto: se for ele o meu pai, então sou filho de um homem quase perfeito. A sabedoriadele não me intimidava, nunca tinha sido uma ameaça para mim.

Eu o considerava um homem tenaz, respeitado em casa, a ponto de ser elogiado pelo pai, que não sabia até onde o filho queria chegar. Certa vez, Halim me disse que Yakub era capaz de esconder tudo. Um homem que não se deixa expor, revestido de uma armadura sólida. De um filho assim, disse o pai, pode-se esperar tudo’. 

Então eu acho que esse trecho representa bem a questão da profundidade psicológica: Yakub que, ao mesmo tempo, era um homem perfeito ou quase perfeito, era um homem tenaz, respeitado, elogiado, é um homem também do qual pode-se esperar tudo. 

Além disso, a gente tem a percepção do narrador dessas palavras e como o que ele ouve do Halim e do resto da família sobre o Yakub que ele conhece tão pouco o tocam, o fazem pensar sobre si mesmo, na possibilidade de ser filho dele. 

Som de página de livro sendo virada

Marcelo Abud:

Os dois irmãos representam, também, duas faces de um mesmo país. 

Milton Hatoum:

Minha ideia foi trabalhar com os semelhantes, os gêmeos, que são também opostos. Eles se parecem muito em alguns momentos e um é o avesso do outro em outros momentos. O destino de cada um é muito diferente. Até uma professora da Universidade Federal da Bahia, professora Mirella Longo, ela fala nesse inconciliável desses dois Brasis que não se entendem, que não conseguem dialogar. E ela usou essa metáfora dos dois irmãos para falar sobre essa incomunicabilidade.

Nós, irmãos, não sabemos ver o outro, conversar com o outro que é o mesmo também, fala a mesma língua. Então acho que aí tem uma metáfora sobre esses Brasis inconciliáveis, vamos dizer assim, a partir da história de cada um, da trajetória de cada irmão e do destino de cada um. 

Música de Reynaldo Bessa, instrumental, fica de fundo

Marcelo Abud:

Ao acompanhar a busca da identidade do pai juntamente com Nael, quem lê ‘Dois Irmãos’ vive os paralelos entre os dramas familiares e os de um país entre o período da segunda guerra e o da ditadura civil-militar. 

Marcelo Abud para o Livro Aberto do Instituto Claro.

0 Comentários
Inline Feedbacks
View all comments

Receba NossasNovidades

Receba NossasNovidades

Assine gratuitamente a nossa newsletter e receba todas as novidades sobre os projetos e ações do Instituto Claro.