A ayahusca, bebida medicinal de diferentes povos indígenas amazônicos, foi patenteada por um laboratório multinacional para uso comercial. O curare, extrato vegetal usado como anestésico por povos tradicionais, foi transformado em relaxante muscular por outra empresa estrangeira. Na década de 1990, os wapixana descobriram que duas substâncias da sua medicina, o cunaniol e o rupuni, foram patenteadas para uso em fármacos por um alemão que esteve em suas aldeias. Em todos os casos, nem o Brasil nem os povos detentores do conhecimento foram avisados ou receberam parte dos lucros obtidos. Esses seriam exemplos de biopirataria.
“Trata-se da apropriação e uso indevido de recursos genéticos e dos conhecimentos dos povos indígenas e tradicionais acerca desses recursos. Apropriação que pode ser realizada por empresas, governos, instituições, pessoas físicas e jurídicas”, esclarece a advogada indígena e mestra em direito público Fernanda Kaingang. Segundo ela, a biopirataria desrespeita o Consentimento Livre, Prévio e Informado (CLPI), que é o direito coletivo dos povos e comunidades para autorizar – ou não — qualquer atividade que afete seus direitos, terras, recursos, modos de vida ou segurança alimentar.
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“A biopirataria também não reparte os benefícios frutos desses recursos de forma justa e equitativa”, acrescenta a advogada. Tais regras estão presentes em legislações internacionais e nacionais sobre o tema. O Brasil é signatário da Convenção Sobre Diversidade Biológica (1992) e do Protocolo de Nagoya (2010). “Esses dois marcos foram utilizados na criação da Lei nacional da Biodiversidade (13.123/2015)”, informa.
Economia em pesquisas
De acordo com o coordenador da pós-graduação em direito ambiental e desenvolvimento sustentável da Escola Superior Dom Helder Câmara, Magno Federici Gomes, o Brasil é alvo da biopirataria devido à sua riqueza natural. O valor da sua fauna, flora e minérios estaria estimado em US$ 2 trilhões — cerca de R$11,3 trilhões — segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
“A origem do problema remete à exploração das colônias pelos países europeus. Caso dos portugueses com o pau-brasil, usado tradicionalmente pelos indígenas para tingir tecidos”, contextualiza Gomes. Ele ressalta, ainda, que a biopirataria provoca danos ambientais e perda de recursos internos para os países explorados e seus povos.
“A empresa estrangeira que se apropria do conhecimento de um povo economiza anos de pesquisa e milhões de investimentos sobre aquele princípio ativo. E é justamente esse povo que preserva a biodiversidade em seu modo de vida, que pesquisou, produziu e manteve tal conhecimento, que nada recebe”, denuncia Kaingang. Os próprios indígenas tampouco são reconhecidos como melhoristas genéticos. “O pequi cultivado pelos povos tradicionais do Parque Nacional do Xingu é mais carnudo do que o do resto do país. Isso devido à ação histórica das mulheres indígenas sobre o cultivo dessa planta”, ilustra a advogada.
Pintura tribal em sandálias
Ainda que o país tenha excelentes leis nacionais e seja signatário dos tratados internacionais sobre o tema, ainda falta um acordo internacional sobre as patentes de medicamentos para erradicar a biopirataria. É o que explica Kaingang: “É necessária uma forma de monitorar se a substância alvo da patente utiliza recursos genéticos, expressão cultural ou conhecimento tradicional de um povo. E, em caso positivo, se a legislação do país de origem e os tratados internacionais são respeitados”. Tal discussão ocorre desde 2010 na Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI, em inglês).
“Propriedade intelectual é o conjunto de normas que regem as patentes desses patrimônios genéticos. O ideal seria um banco de dados para efeitos internacionais”, analisa Gomes, que também defende a quebra de patentes. “No caso do curari, utilizado hoje em procedimentos médicos em todo o mundo, um medicamento genérico beneficiaria a todos. Também não faz sentido o Brasil pagar por um medicamento feito com um recurso dele que foi apropriado”, opina.
Os dois pesquisadores também recomendam a revisão da lei 13.123/2015. “Ela centraliza o poder de controle no governo federal, indo contra a ideia de pacto federativo”, opina Gomes. “Indústria e centros de pesquisa foram ouvidos na sua elaboração, exceto os povos tradicionais indígenas, que criam, mantêm e disseminam os conhecimentos sobre recursos genéticos”, reforça a advogada.
Recentemente, porém, houve ganhos. Em 2004, o Brasil quebrou a patente de uma empresa japonesa sobre a exportação do cupuaçu, fruto de uma árvore originária da Amazônia. Em 2019, após 13 anos, o povo Ashaninka (AC) ganhou uma causa contra a empresa Tawaya pelo uso indevido do murumuru em cosméticos. A planta é conhecida por eles devido ao seu alto poder de hidratação. “Para completar, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) conseguiu reparar um povo tradicional como titular intelectual de pinturas tribais que foram estampadas em uma famosa marca de sandália”, comemora Gomes.
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