A atriz Juliana Del Rosso, 31 anos, tinha se mudado há apenas cinco dias para o bairro da Freguesia do Ó, em São Paulo (SP), quando ela e outra moradora foram atingidas por uma linha de cerol enquanto andavam na rua. “A vizinha levou mais de dez pontos no braço e a linha atingiu o meu queixo. Se fosse poucos centímetros abaixo, poderia ter alcançado a minha garganta e eu teria morrido”, relembra. 

O cerol é mistura de cola de madeira com vidro moído vendida clandestinamente e passada nas linhas das pipas com a intenção de cortar as linhas dos outros empinadores.  Também recebe o nome de faca, chileno, corta, gilete, facão, entre outros.

Uso de cerol
(Crédito: बृहस्पति | através da wiki Wikimedia Commons)

“O uso é cultural e não se restringe a crianças e jovens, mas adultos também. O perigo aumenta nos meses que têm mais ventos que coincidem com as férias escolares”, explica o coordenador da campanha nacional e do site informativo “Cerol não!”, Robson Moraes Almeida 

A campanha foi criada após ele ser vítima de cerol, em 2004, na cidade de Lagoa da Prata (MG). “Andava de moto na rodovia quando escutei um barulho de cerra. Só parei quando percebi que a linha havia cortada a minha roupa e atingido a perna. Consegui evitar uma queda e percebi o estrago a quatro centímetros da carenagem da moto. Se fosse acima disso, eu teria morrido”, relembra. 

Assim como Almeida, motociclistas são as principais vítimas do cerol, além de paraquedistas, ciclistas e, claro, transeuntes. No caso dos motociclistas, há a necessidade do uso de equipamentos de proteção como protetor de pescoço e antena para interceptar linhas. 

“Capacetes sem viseira favorece o corte no rosto e olhos, podendo cegar. Há casos de pessoas que tentaram retirar a linha do pescoço e tiveram dedos amputados”, relata Almeida. 

Aves mutiladas 

Há variações do pó cortante usados no cerol, como o pó de ferro. “Este tem o agravante de conduzir eletricidade quando toca nos fios de alta tensão, provocando choques elétricos e até morte de quem solta a pipa”, assinala Almeida. 

Os curtos circuitos podem interromper a rede elétrica e parar equipamentos vitais para a manutenção da vida, como os hospitalares. Apenas no Pará, as interrupções de energia motivadas por pipas com cerol somaram 2.284 entre janeiro a maio de 2022 segundo as distribuidoras da região. A Companhia Energética de Pernambuco (Celpe) registrou mais de 100 interrupções de energia motivadas por pipas no estado em 2021. 

Os animais são outras vítimas das linhas de pipa com objetos cortantes, como aponta o gerente de fauna no Instituto Estadual do Ambiente (Inea) do Rio de Janeiro, Marcelo Cupello.

“As aves são as principais atingidas, sofrendo amputações e sendo sentenciadas a uma vida ruim em cativeiro, devido às mutilações. Docilmente elas podem retornar à natureza”, explica.

Outro problema é que os centros de acolhimento e triagens de animais silvestres são transitórios, não possuindo capacidade para abrigar definitivamente todas as aves atingidas. “E animais de vida livre não podem ser direcionados a clínicas veterinárias comuns, sob o risco de transmitir doenças para pets. Tudo isso gera um passivo para o estado”, contextualiza Cupello. 

Falhas na legislação

Denúncias sobre o uso do cerol podem ser realizadas via Polícia Militar e no Corpo de Bombeiros Militar. Os incidentes envolvendo as mistura cortante, porém, são subnotificados, o que impende entender a real dimensão do problema. 

Tão pouco existe uma lei federal que trate especificamente da comercialização e uso de cerol, com legislações e fiscalizações ficando a cargo dos estados e municípios. 

Atualmente, o Distrito Federal e pelo menos 10 estados contam com legislações sobre o tema: MA, MT, MS, MG, PR, RJ, RO, SC, SP e PA. “Muitas não são abrangentes, envolvendo produção, comercialização, transporte e uso do cerol. Tudo isso prejudica punições”, destaca Almeida.  

 Já na Câmara dos Deputados, o PL 402/2011, que tipifica o uso do cerol como crime, ainda segue em tramitação. 

Juiz de direito e especialista em segurança pública, Rodrigo Foureaux explica que ato de utilizar pipa com linha com cerol, por si só, não caracteriza crime ou contravenção penal, desde que não coloque outras pessoas em risco. 

“Porém, quem solta pipa com linha cortante próximo a uma via pública sabe dos riscos a terceiros e poderá praticar os crimes previstos nos artigos 121 (homicídio), 129 (lesão corporal) e 132 (perigo para a vida ou saúde de outrem) do Código Penal”, complementa.

Já a comercialização de cerol e afins caracteriza crime contra as relações de consumo (artigo 7º, IX, da Lei n. 8.137/90)”.

“O Código de Defesa do Consumidor explica que o fornecedor não pode colocar no mercado de consumo um produto que apresenta alto grau de periculosidade à saúde”,  esclarece o juiz.

Segundo ele, já houve punições ou reclusões motivadas pelo uso e revenda de cerol, mas essas são raras. 

Em relação às crianças flagradas usando cerol, é possível interpretar o cerol como arma e incluí-lo no artigo 81 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que proíbe a venda de determinados produtos e serviços a menores de idade.

“O estabelecimento que venda esses produtos, poderá ser multado e os pais responsabilizados usando o artigo 249 do ECA”, orienta o juiz. 

“Ouvimos inúmeras circunstâncias de pessoas que são feridas e morrem vítimas do cerol ano após ano e o uso ainda é naturalizado. Ainda se fala pouco disso e falta uma criminalização mais efetiva. O cerol pode interromper uma vida de uma hora para outra”, finaliza Del Rosso. 

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